Tinha um irritante sorriso de bazófia e aquela distinta sobranceria de um patrão, falava do seu percurso e de si próprio regurgitando há décadas a mesma ladainha, empregando um tom de lenda, e essa narração acabou replicada, em parte pelo menos, nos necrológios, o que sinaliza como ele soube ler a tendência para reduzir tudo a uma caderneta de cromos, tendo desde muito cedo tratado de fomentar o panegírico em redor da editora e do seu papel, esse canto tão fantástico porque fúnebre, enquanto a casa se governava e o negócio se robustecia, e ele encarnava aquele género de heróis por conta de outrem que sempre povoaram o campo da edição. Assim, se lhe deve ser reconhecido o inegável mérito de ter criado um catálogo impecável, que defendia um tribunal às avessas, e a subsistência de um modo implacável da crítica integrando os contributos de anarquistas, comunistas libertários, situacionistas, erguendo uma galeria de autores em que o todo era manifestamente mais poderoso do que a mera soma das partes, por outro lado também se lhe pode apontar uma espécie de desencorajamento dos autores empenhados em fazer esta mesma crítica anticapitalista entre nós, sendo que nos últimos anos a própria revolução por cá parecia ter sotaque estrangeiro, como uma ideia que só poderia vingar se fosse importada. Podemos reconhecer a Luís Oliveira o ter criado as condições para que um conjunto de colaboradores e leitores – por vezes sonegados ou secundarizados por ele, sempre que achava necessário açambarcar os créditos e ressalvar que a Antígona era ele mesmo – pudessem compor lentamente e de forma muitíssimo coerente uma biblioteca com cerca de quatro centenas de títulos que se tornou um formidável desafio à civilização da alienação, por outro lado, ele mesmo desdenhou em tantas das suas intervenções os elementos mais radicais e emancipadores daquelas propostas, e enquanto as escolhas se mostravam bastante rendosas, não hesitava em recorrer aos tais “silogismos bolorentos” sempre que precisava de justificar a sua visão bastante conservadora e pragmática da empresa onde ele cumpria alegremente o papel do patrão. Mesmo se tantas vezes exibia uma confiança meio delirante, reclamando para si a aura e a distinção dos editores que dissipavam fortunas para dar expressão às vozes e às artes abomináveis, confundia duas esferas, duas formas de orgulho antagónicas, a do homem que triunfou enquanto a proliferação dos livros reduzia a sua esfera de irradiação, e a do tal editor que “escolheu os caminhos selvagens e abandonados pelos senhores do saber social dominante e que conseguiu aguentar-se no tempo” (Jorge Valadas). Acontece que esse triunfo significou em grande medida uma adaptação aos apetites do mercado, nomeadamente uma ânsia por oferecer o tipo de mercadoria que consubstancia uma forma ritual e gestual que passa por envergar o protesto e os sinais de repúdio pelo capitalismo, sempre enquanto símbolo, sem pôr seja o que for em causa, nem corroer as estruturas de coacção. Na verdade, este cinismo apenas as reforça, dando a possibilidade a alguns de se ludibriarem, continuando a consumir de forma impune, e escolhendo estrategicamente quando lhes convém assumir uma distância irónica. De resto, como demonstraram alguns autores, esta estrutura de repúdio serve de álibi ao próprio capitalismo, e não deixa de ser curioso que a Antígona seja um dos raros exemplos entre as nossas editoras que beneficiaram com a fusão realizada pelos grandes grupos editoriais, pois enquanto concentravam pequenas e médias editoras, convertendo-as em chancelas, e absorvendo os catálogos, para logo promoverem uma gestão centralizada, a editora de Luís Oliveira soube valer-se do definhamento da diversidade das apostas editoriais para reclamar a sua imunidade face àquele processo de extinção. Isto permitiu-lhe surgir isolada, com o seu editor a imaginar-se o nosso Crusoé, formulando essa consciência de um náufrago que resiste na sua ilha, entregando-se a acessos de megalomania em que reclamava para si o mérito das obras que lhe chegavam de fora e que ele traduzia e divulgava num contínuo sermão aos peixes, imaginando que sem os ter descoberto e publicado, os autores nem existiriam. No caso de Luís Oliveira, a distorção ainda é mais grotesca, uma vez que do inegável prestígio que alcançou o seu catálogo, um dos aspectos mais assinaláveis é a quase total ausência de verdadeiras descobertas, não editando propriamente os textos, mas limitando-se a fazer uma curadoria a partir das apostas feitas lá fora. Mesmo assim, gostava de se imaginar à frente de um quartel-mestre e adega de ratos, serpes e escaravelhos, uma forma de inversão folclórica com vista a exaltar aquele pequeno coral de espíritos indómitos ocupados a compendiar tantos dos mais ferozes discursos de crítica ao quadro de impostura e opressão a que nos vemos submetidos.Enquanto o sector se ressentia com aquele efeito de esmagamento e abolição do ecossistema editorial, a Antígona reforçava a prosápia, e impunha a sua encenação moral, num zumbido que às tantas operava mais como “um ruído de fundo carnavalesco”. Com insuperável jactância, os materiais promocionais desta reclamavam títulos entretanto exaustos como o da mais insolente editora, refractária, sediciosa, subversiva, transgressora, uma força de resistência, uma conspiração permanente contra o mundo… E isto a um ponto tal em que o projecto de crítica parecia cair para segundo plano, enquanto ganhava relevo um programa de auto-celebração, que se estendia aos próprios leitores, os quais, enquanto se forneciam de textos incendiários que deveriam reduzir a cinzas o quadro miserando da mercantilização e o enredo espectacular, ali participavam num cerimonial em que a aquisição dos livros passava por ir buscar a hóstia maldita, numa liturgia que invertia os signos apenas para reproduzir uma outra ficção beatífica. E aquele discurso absurdamente enfatuado e que se fazia passar por insolência, não significava outra coisa senão uma reconvenção do fetichismo da mercadoria. Leia-se a título de exemplo uma dessas proclamações destacadas em letras garrafais nos panfletos da editora: “A Antígona não aspira conquistar um lugar, modesto que fosse, no mundo das artes e das letras, nem na história assaz respeitável da edição. Se por infelicidade um panteão lhe fosse oferecessem, o único que lhe conviria seria o dos grandes cataclismos, ao lado dos terramotos ou do dia da peste. Da peste; sem dúvida!” Assim, se todos beneficiamos do trabalho de quase meio século de uma editora que se construiu como uma promessa de desobediência, e em que cada livro devia renovar um apelo ameaçador, se não podemos deixar de elogiar as suas edições esmeradas, com óptimas traduções, um excelente trabalho de revisão, e, nos últimos anos, impondo-se ainda pelo cuidado gráfico e com a paginação dos livros, produzindo objectos muitíssimo estimáveis, a própria editora deveria ter dado o exemplo, abrindo a possibilidade a um reflexo crítico do seu trabalho, a que lhe fossem apontados os excessos numa forma de comunicar que passa por gabarolice, no que, de resto, segue a postura do seu editor, que fazia gala dos seus opíparos consumos, alguém que pela sua intervenção emancipadora requeria os luxos de uma aristocracia subversora, mas se nuns momentos se dizia comprometido com “a subversão das condições mentais presentes”, e empenhado em contribuir com as suas edições para a crítica da sociedade mercantil, não hesitou em recorrer aos tribunais quando outro editor se antecipou à suspensão dos direitos de autor sobre a obra de George Orwell, isto depois de confessadamente ele mesmo ter conseguido alguns dos maiores êxitos de vendas da Antígona com sucessivas edições pirata, e que, nos últimos anos, levou ao paroxismo a sua postura de vigarista e troca-tintas indo ao ponto de desautorizar os autores que publicava, abusando de máximas dissolventes e dando a entender que não havia de facto alternativa ao tal regime mercantilista. Assim, mesmo se fazia a fita daquele que veio fazer entre nós qualquer coisa que absolutamente tinha de ser feita, dita, pensada, para que a conspiração se mantivesse enquanto uma operação permanente, uma resistência às ideias feitas, à acomodação, aos conversadorismos, às tantas, a própria persistência, e aquela história de meio século, oferecia-nos uma leitura dolorosa sobre o fiasco daquelas propostas, de como em cima delas foi possível construir um esquema bastante lucrativo, mas não se gerou qualquer contágio ou motim. De resto, se nunca se eximiu de expressar uma visão deprimente do nosso próprio contexto cultural, se não perdia a oportunidade de rebaixar os escritores portugueses, repetindo que era mais difícil um autor entrar no catálogo da Antígona do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha, quando o confrontávamos com essa tão severa apreciação e lhe perguntávamos se já tinha lido este ou aquele título, autor, a resposta era que não, invariavelmente lá reconhecia que não fazia puto de ideia. Portanto, o seu magistério passava por uma obnóxia indiferença e desdém, e se nunca se mostrou muito empenhado em instigar e dar força a um ímpeto de crítica selvagem entre nós, depois mostrou-se muito competente na hora de se servir do estrangeiro como uma assombração desoladora, uma barreira supressora.
quinta-feira, março 27, 2025
Luís Oliveira (1940-2025). Uma revolução com sotaque estrangeiro
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