terça-feira, setembro 15, 2009

Otto Dietrich zur Linde

DEUTSCHES REQUIEM


Ainda que ele me mate, confiarei nele.
Job 13:15


"(…) Homem de olhos memoráveis, de pele citrina, de barba quase negra, David Jerusalém era o protótipo do judeu sefardita, embora pertencesse aos depravados e enfadonhos Ashkenazim. Fui severo com ele; não permiti que a compaixão nem a sua glória me abrandassem. Eu tinha compreendido há muitos anos que não existe nada no mundo que não seja o germe de um inferno possível; um rosto, uma palavra, uma bússola, um anúncio de cigarros, poderiam enlouquecer uma pessoa, se esta não conseguisse esquecê-los. Não estaria louco um homem que continuamente pensasse no mapa da Hungria? Determinei aplicar este principio ao regime disciplinar da nossa casa e… Em fins de 1942, Jerusalém perdeu a razão; no primeiro de Março de 1943, conseguiu matar-se.
Ignoro se Jerusalém compreendeu que, se eu o destrui, foi para destruir a minha piedade. Perante os meus olhos, ele não era um homem, nem sequer um judeu; transformara-se no símbolo de uma detestada área da minha alma. Agonizei com ele, morri com ele, de algum modo me perdi com ele; por essa razão, fui implacável. (…)
Acossado por vastos continentes, morria o Terceiro Reich; a sua mão estava contra todos e as mãos de todos contra ele. Então, algo de singular aconteceu, e creio entendê-lo agora. Eu supunha-me capaz de esgotar o cálice da cólera, mas no último gole deteve-se um sabor inesperado, o misterioso e quase terrível sabor da felicidade. Ensaiei diversas explicações, não me bastou nenhuma. Pensei: A derrota satisfaz-me porque secretamente sei que sou culpado e só o castigo pode redimir-me. Pensei: A derrota satisfaz-me porque é um fim e estou muito cansado. Pensei: A derrota satisfaz-me porque aconteceu, porque está inumeravelmente unida a todos os factos que são, que foram, que serão, porque censurar ou deplorar um só facto real é blasfemar contra o universo. (…)
Ameaça agora o mundo uma época implacável. Fomos nós que a forjámos, nós, que já somos suas vitimas. Que importa que Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a violência, não a servil timidez cristã. Se a vitória e a injustiça e a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para outras nações. Que o céu exista, mesmo que o nosso lugar seja o inferno. Olho a minha face no espelho para saber quem sou, para saber como me portarei dentro de algumas horas, quando me defrontar com o fim. A minha carne pode ter medo; eu não. "

Excerto de “Deutsches Requiem” em “O Aleph”, de Jorge Luís Borges.
Editorial Estampa

1 comentário:

Lego disse...

Esse texto é ótimo! O livro inteiro...todos os livros.