quinta-feira, dezembro 19, 2024


O que é que o som de pássaros tem a ver
com estes lugares de culto, e o hábito 
de substituir a perversidade natural
pela ambição de vulgares imitadores
estes que usam tinta e fixam disparates,
pintores, filósofos, fotógrafos, estudantes
de moda, os imbecis do costume, todos
os que perderam o sexo e a fome, e costuram
vezes sem conta as suas fantasias fingindo 
uma intensidade criminosa sem levarem
nada até ao fim? Só que depois é o monstro
quem ouve primeiro esses sons, a luta
pela vida das coisas que não podem estar
no mundo. Já tirámos tudo o que foi possível 
de sacos de papel, o horror das migalhas
e a disputa entre sombras, mas se queremos 
que vejam algo mais, não seria necessário
torturar cada um deles? Repara como
mastigam cada nome e lhe esquecem o rosto,
os detalhes assombrosos, os traços frios,
as hastes, o nariz quebrado, o modo de
pedir com os olhos. Passam-lhe batom
e o sorriso ainda fica um caos, porque é
ainda pior do que se diz, este jogo de azar,
a arma que vai passando de mão em mão,
e mais tarde, ah, mais tarde esperam eles,
cheirando o rastro que deixaste, fazendo
aquelas caras, tirando notas, julgando
que se acabou, e que estão safos, só que
depois ainda é a vez dos nossos ecos.


quarta-feira, dezembro 18, 2024


rompe e rasga, põe aí o recorte
e o acidente natural, tudo foge,
se esquiva a si mesmo, tudo quer
lançar-se sobre outra coisa,
a fantasia das coisas é o diverso,
a sombra misturada, a vertigem
sexual, cada quarto íntimo é 
uma tremenda confusão, ficam
impregnados os sinais de uma
metamorfose incompleta, dolorosa
mesmo a consciência é apenas
a passagem, e cada um nasce já 
com a sua lâmina, o tempo fere-se
entre nós, e é depois de um corpo,
da necessidade absoluta, quando
desse gosto de que antes não 
sabias como te saciar, é então 
que deixas esse gesto a meio e
sentes o eterno cansaço de certos
meses, puxas os lençóis sobre
a cabeça, porque no fim nada nos
satisfaz, a poesia é a interrupção


terça-feira, dezembro 17, 2024


Sem fortuna de espécie alguma, com o nome
por fazer enquanto outro feito já contra ti
surge amiúde na boca dos demais
como pérola negra desse baixo tom de intriga
e da amargura de tanto morderem no vazio
mas se, da sua ameaça, resta um gosto acre,
quanto à força tomam-na por devaneio
pois tudo o que vive lhes causa tonturas
tudo o que importune a ânsia de juros
que os leva a rebaixar a beleza, irrita-os,
como cada pedra refazendo o seu voo
ao reanimar os estilhaços e a corrente
entre as ilhas obsedantes, a favor
da irrupção do quotidiano no mundo divino,
seus lugares e vozes, tudo isso os assusta.
Num convívio do real com o irreal,
a cada manhã o poeta desperta diante
da sua insuportável metamorfose,
tão doce para nós, vem e ofende o mundo
devasta-lhe o pudor, as convenções, mas
e estes comedores de lótus, que fazem?
Apenas se repetem, só criam espuma
em vez de ondas, e em vez de igualarem
aquele transtorno exaltante, vulgarizam-na 
para que se pareça um pouco com eles.
Nunca este ou aquele homem puderam
apropriar-se dela, dessa luta para tirar
a forma do caos, imprimindo de novo
o seu escândalo. Mas que fazem os imbecis?
Falam tanto dela, querendo apenas dizer
uma e outra vez: eles mesmos, a posse,
esse vazio dos que respondem sempre
à chamada, sem nada de perturbador que dizer.


segunda-feira, dezembro 16, 2024


Das cem vezes que fomos ao fim do mundo,
pelas contas que tu fazes, eu já preferia
apenas quedar-me sentado a ouvir
esperando pelo dia em que só nos reste
recuar, dar claridade ao que ficou
pelo caminho e rever tudo ao longe
a despegar da casca, emendá-lo, pôr lá
novas cousas e assustar os que morrem
com o dedo encardido nalgum mapa
temos o mar ali à direita, dando-nos corda
e alguma pena, soando como o riso
dos afogados, mas dizes tu que ainda
cercamos terras inverosímeis
aquela desmesura lenta do que
nos assombrava, o que persiste hoje
sem perfume e só nos cansa, assim
de bruços sobre mesas de pouca luz 
parece que desenhamos um do outro
o contorno no pó que se acumula.
Neste país de gente acenando 
para alguém que foge, tão cedo isto
a que chamam vida nos desmoraliza.
Lavamo-nos só de raro em raro,
como velhos reis sem apetite nenhum,
enredado o suspiro nesse murmúrio
em que nos cozem, se retemos memórias
é só do que se viveu por fora, eu aprendi
noutros mundos vi sobre outros muros
espiei tirando notas volumes e formas
por isso antes que a imaginação se esgote
e só a oiçamos tossir encher-se de bolor
volto regresso lá como me lembra
entre os detritos e por onde ainda dói 
com o sangue tomado de um ritmo
capaz de corroer os ossos como ferrugem
e faltando isso um dia destes até prefiro
morrer destelhado como o Assis a
lamber o reflexo na montra duma livraria
quase distraído quase desinteressado


domingo, dezembro 15, 2024


Vamos medindo a morte a cada verão
e mesmo se a luz já não nos diz respeito
tentamos recuperar uma província:
esta, antes que escureça de vez, 
antes que o mundo perca aqueles traços,
esse rosto de que gostaste tanto…
Os pássaros pousam na flecha do catavento 
que aponta a Sul, um céu baixo ferido
roça-se nos telhados, nas vigas
que sustentam a tarde, um sino arrulha
para não espantar o silêncio que ainda dorme,
cada um se defende com o olhar,
segurando a vida e a sua distância,
polindo a herança de uns quantos trejeitos 
como esses primitivos que carregam 
por toda a parte o maxilar inferior
dos seus mortos. Estamos gratos
sobretudo por esta tristeza,
a atenção aos frutos que não foram
colhidos e já só sabem a verme,
o regresso a Drummond e à epopeia 
dos pobres diabos, essa distracção 
que nos leva a olhar pelos outros
a apaixonar-se sem a menor vontade
de interrompê-la, de alimentar as ilusões
do costume. Colhemos uns detalhes,
inventamos outros, e podemos admitir
que gosta de trabalhar em hotéis
sobretudo nestes que já vão caindo
aos bocados, e que deve agradar-lhe
aquela arrastada presença anónima,
os gestos sem grande significado,
a sensação de viver pelos fundos.
A beleza podia complicar as coisas,
mas já não tem de se preocupar com isso,
muda a roupa de outra cama, 
apanha um brinco, um corta-unhas,
escuta uma música abafada,
sempre que ouve as conversas
sente um cansaço enorme da vida.
Deve ser bom tomar café com ela,
deixar que os séculos apodreçam
sem tentar salvar qualquer essência.
Nem abrir a boca, não dizer mais nada.
Pois é certo que, no fim, são as coisas
que dissemos que um dia regressam
para dar cabo de nós.


terça-feira, setembro 17, 2024


Entre o barulho acha-se hoje uma epopeia
nos ruídos que se perseguem, entre as frases
abertas como navalhas, ou neste copo 
que me deixa nos lábios o gosto
de um sonho que não era para mim
e dele guardo o rasto de um corpo estranho
um apetite por aquela que nem morta,
vive-se abalado pelo impossível,
deitando as mãos remexendo nos ciclos
e um dia aprendemos que o futuro
é tão antigo como o passado,
mas se ao menos eu soubesse sempre
o que sei agora, se me fosse oferecida
a oportunidade de um crime voraz
não diria outra palavra,
morre-se demasiado na imaginação
cada vez menos a meio no vinco da vida
nos extremos do mal ansiando o novo perfume 
e então que pressa de sacudir o cadáver 
ameaçar cada uma das pulgas
levar a sarna a outros fins
fazer nascer na própria carne o verme
que ri e aumenta a fome e o escuro
tudo aquilo que te rói para lá da vida
o gozo de ir ao lago pé ante pé 
e estrangular o cisne, o próprio canto 
lançar esses reflexos procurando outra forma
na superfície da água 
falamos e as palavras fazem-nos ver
e ter claro como tudo isto será esquecido 
roubar é por isso o verdadeiro gesto
entre todos o mais doce e misericordioso 
guardando horas perdidas, dando-lhes
continuação, outras vistas
flores voltadas para sóis destruídos
e como estas nos apresentam a luz,
o calor de tudo o que se acabou,
as crianças que chegaram à fala
imitando os pássaros,
apanhando os próprios ecos
para os levar a outro fundo
desenvolvendo cores amargas, a razão 
de tudo quanto treme, como eu ou ele
diante da nudez dela
dos gestos repetidos pelo espelho,
os dois juntos encantados vimos
como acalmavam o tempo


segunda-feira, setembro 16, 2024


Com isto nunca quis gravar porra nenhuma,
mas mexer com os materiais da invenção,
batia as letras como quem pega e compara
os tipos, monta cada frase e passa tinta
num ritual para vir esperar algum ritmo
que se impusesse como uma debandada
uma ordem fabulosa erguendo nuvens de pó,
mas cedo dei com os notários os enredos
memoriosos relativos à posse, aos títulos
e percebi como por um receio qualquer
quiseram tornar as lendas imperecíveis
servindo-se da tinta, uns ditando outros
transcrevendo, fazendo cópias truncando
não tanto o sentido como a sonoridade
e às tantas os astros ficaram mudos,
deixando de exercer a sua rigorosa fluência, 
o ritmo sofreu, e o ímpeto, claro, em breve
as imagens achavam-se desencontradas,
os sons vagavam incapazes de se reunir
às coisas, os nomes pareciam cascas,
restava perder-se no silêncio levando só 
um texto para se misturar a ele, sangue
com tinta, reescrevê-lo, rasgar as folhas
meter os bocados na boca e recuperar
enfim tudo sem vontade de estragar nada,
tornar-se analfabeto enfim sabendo-o
de cor, e perder a relação entre os sons
e os signos, mas murmurá-lo para se
adormecer, do mesmo modo como a casa
responde ao vento, e a esse assédio senil,
e se a tempestade aqui é leitura suficiente 
o candeeiro recita de memória 
aquilo que nos foi dito pelos mais velhos,
e eu lembro-me que adorava não perceber 
metade, coser os pedaços que apanhava 
bem vivos no ar, aquelas conversas parecendo
eternizar-se na ânsia de captar algum detalhe 
quanto à natureza do próximo mundo…
Por agora a madrugada ainda assinala
um território sagrado, e nós caminhamos 
encostados à pulsação, atentos a ínfimos 
movimentos no escuro, a corpos
que nos deixaram o ritmo a que respiravam,
respeitando a lua e o seu luto, vagueando 
junto a ela e na companhia dos lobos,
já a mim sempre que a olho dá-me
a impressão de que deve tresandar a álcool, 
acho-a triste, afinal só temos esta ronda
tão larga, mas tão dependente de outro corpo,
e recito-lhe coisas, peço-lhe a opinião,
invento diálogos, apostas, desafios:
basta que chova e já me sirvo disso e juro
bater à porta daquela de quem ainda
vou escrevendo o nome, isto se a lua
e o vento me derem cinco minutos,
um intervalo claro, perfeito
de modo a que se torne indelicado dizer
que não, estando ali eu, de noite e à chuva,
implorando que abra e me convide a entrar.


segunda-feira, setembro 09, 2024


As estações já não aguentam qualquer
efeito de composição, nenhum vaso
contém seja o que for, não se conhece já 
ninguém pelas coisas que diz,
talvez tu que ainda foste uma mulher
quando nenhum de nós presumia saber
o que isso significa, a insolência
a candura, os sinais distribuídos pelos dias
e sobre a pele, trazíamos e levávamos coisas
do museu das nossas memórias
para fazer sentido do que ia sucedendo,
andávamos por ali entre as estátuas
de feições corroídas e das quais podíamos 
colher nos dedos a saliva dos séculos,
tinhas a tua pequena e confiante voz
de quem canta entre o quarto, o chuveiro,
o corredor, essa existência nua,
tinhas o teu poço as rezas oferecidas
as conversas ao telefone a más horas
as acusações dirigidas a deuses de nada,
a tua preocupação em fechar a torneira 
do gás na cozinha, como se imaginasses
que a morte pudesse visitar-te
por um descuido desses, cuidados inúteis 
que te tornam compreensiva, próxima até 
daquela mítica letargia dos rapazes,
também a mim a única moral
que me importa é o tempo, ter bem claro
a todo o momento que já tudo aconteceu
e que só resta escolher o ângulo, como as aves 
que emigram de uma terra para outra,
porque o elemento em que se movem
é o mesmo que respiram, por isso largam
em bando, não ficam para assistir
à desolação, tornam-se um primeiro sinal,
e eu gostava de falar o que elas falam,
uma linguagem que fosse em si mesma
um alimento, um presságio, sons vivos
que com a sua mera propagação 
já nos dizem se o ar se tornou amargo,
ter um nome em si mesmo difícil
como um gole que lhes encha a boca
e os obrigue a cuspi-lo, com um gosto
a maldição ou ao menos a veneno.


segunda-feira, agosto 19, 2024


A memória de um violino chega a ser
o mais importante, a escavação
que foi necessária para lhe arrancar
aquele som, para restituir
cada um dos ossos
a uma composição imaginária.
E se a perfeição é odiosa, não muito
longe, colhe-se um defeito admirável,
aquela sublimidade que buscavam
os exploradores polares transformando-se
em manchas nessas distâncias que ainda 
falam entre si, onde se ouve o eterno
girar do universo e a sua eterna morte
ecoar na frágil carne dos homens,
o mesmo pulso que ouves com as mãos
sobre as gigantescas pedras de cantaria,
a escala dolorosa do que nos cerca,
dos mitos, daquilo que já não parece
feito para nós. Alguns meses sem falar
e regressa o prazer de isolar as palavras,
de sentir o caule destas roçar num frasco,
como a tentação de dar cabo do estilo, 
traduzir apenas esse resto de sol
que fica nos ossos, e a luz dos lugares
onde o mundo não existe, onde te achas
entre corpos que já não se importam,
que abandonaram as histórias
e que o aguentam simplesmente. Vens
a um sítio destes e vês-te prisioneiro 
de um rosto obsessivo, da sua mania
de olhar, da insistência sem uma palavra
a que te agarrares. E nem isto, nada.


quarta-feira, agosto 14, 2024


Prefiro os escombros
e também o vento que entre eles
soube aprender línguas,
cobrir as maiores distâncias,
nesse tempo falávamos mais
e o mundo parecia tremer aberto à ênfase
ao embalo que levava a frase,
através da infância chegava-se a todo o lado,
mas hoje é difícil,
aquilo que importa resiste sem ser visto,
e dependendo da hora
se forem suficientes os que dormem
ainda se pode escutar a canção dos bosques,
se cresceste do lado da impaciência 
és derrubado todas as tardes
pela inclinação e os contornos que assume a luz,
persiste um rumor por aqui que atrai os navios,
os homens pedem um pouco de água doce,
e o ar ganha outro peso,
é teu vizinho esse pobre e velho homem
cego, cego como um morcego
e que leva o seu murmúrio à frente
alimentando-se como Homero
das vozes, dos ecos mais antigos
e que se acham tão vivos como dantes
pois comovem igualmente esta terra,
afinal somos ainda os mesmos,
e a ti toda essa proximidade
tem-te cada vez mais atento;
escuta, força o inferno
a sair da mais branda matéria,
vai buscá-lo e à beleza onde tiver de ser,
e quando for hora de regressar aos navios
entre as vozes gregas estará a tua.


terça-feira, julho 30, 2024


E que importam todos estes trabalhos,
afinal de que nos serve um tão grande apego,
fazes sequer a menor ideia
do que pode seguir-se?
Por alguma razão aos condenados
interessa tão pouco falar no futuro.
Quem chega ao mundo deve libertar-se
de tanta tralha, e só então lhe tocará
um desejo enfim renovado de pôr os pés na terra
depois de uma tão grande fadiga nos museus.
Contamos os degraus enquanto a luz
ganha as suas antigas propriedades,
e é possível perceber como a vida
lhe responde,
como isso te deixa imóvel a assistir
enquanto tudo à volta se transforma,
nesse modo que há de arder
encostado a ouvir a canção e o tumulto
dos mundos que houve,
e alguém terá de apagar-te o corpo com as mãos
até dele restarem apenas cinzas, alguém
que te desperte do embalo e abandono
a uma tão melodiosa gravidade.
Haveremos de falar mais tarde,
reaver a sequência olhando os frascos
de compota cheios de pirilampos
apanhados lá atrás dançando em honra
de uma era há muito extinta,
passaremos um bocado os dois 
a ferver num pote umas ervas
e o próprio nada, que perfume!,
todo esse alimento para oferecermos
às distâncias, reanimando-as.
Agora que a morte começará por fim
a soar-te como deve, como uma piada
com toda a sua redundância, ela mesma
exprime a única tarefa ao nosso alcance: 
trazer um pouco de ordem
entre a devastação, colher no lixo
as semelhanças, a ruína enternecida
e os seus delírios. Basta ter o sentido
e mesmo entre o pó nos será possível 
beber a tonalidade das coisas,
deixando que as antigas vozes
de novo façam vir à superfície 
aquela jubilosa frase infindável.


segunda-feira, julho 22, 2024


Procurado por algum crime que hoje 
já esqueceu, desviou-se da rota, viu
coisas que não esperava da carne
e foi tomado de outra obsessão,
buscando algum fragmento perdido
do relato que impôs esse intervalo
entre a sua vida e ele, interrogando
tudo na varanda entre cigarros, plágios,
como tantos nessa idade incerta
bebemos cerveja, olhamos o mar
imaginando que mais poderá seguir-se,
trocam chistes e lendas estes que ainda
se mostram capazes de alguma ênfase,
descascando a realidade como uma peça
de fruta, deixam-na pelos quartos, 
onde passaram temporadas do avesso
os astros beliscando-os no sono,
entre visões recortadas por outra luz
sob o efeito da qual recolhem
a sua forma mais lúcida. Mais tarde
o sangue há-de perder o gosto pelo mundo, 
mas por agora a noite estende-se sem
acatar limites ou proibições, cada nome
suporta um certo desgaste e ilumina
esta época em que os verbos se conjugam
no plural. O navio aos poucos deixa-se
consumir, a água sob a quilha, a onda
corroendo a popa, da proa esteiras
correndo, onde era a amurada, agora
há videiras, e trepadeiras onde era
o cordame, também as sombras acabam
por consumir-nos o reflexo, o ar sem vida
vai ganhando nervos, e o som que então
nos acerta como um harpão até estes
hábitos próprios de quem se habitua
ao cativeiro, e da vinha que tomou conta
dos remos colhe as uvas com que alimenta
os seus leopardos, entregando-se ao felino
lazer enquanto dispõe sobre o soalho
as antigas escamas, e se despede de vez
do azul profundo que teve ao seu redor.


quarta-feira, julho 10, 2024


Os nossos rostos surgem nos mais frágeis 
reflexos, como eles os recortam
não fazendo ideia com o que nos parecemos
e se jogámos tudo como danados
não poderiam saber que fomos
a descoberta feita uns
pelos outros, desmentidos tocados
de um modo que nem sonham
se sequer sabem como se diz
a luz que sobrevive sem se deixar prender,
e se queremos falar-lhes mais fácil
se torna fazer-lhes a guerra
quando nada dariam por esse antigo encanto
de ver passar, como a alma se cala
chegados àquela velha
doce indiferença, do outro lado
desses miúdos que ouvimos ainda
falar sempre de outros lugares
com um cuidado terrível
um modo inclinado de se dirigirem às coisas,
roubando os gregos e o vento
vindo de longe,
cada noite enchemos um copo
entre os restos desse enorme navio
que se negou e assim cumpriu
a mais estranha viagem,
uma que outra onda ainda
nos revira sacode
e o mar obriga-nos
a beber esse gole glacial
enquanto juntos levantamos a rede
num mudo entendimento diante
da vida e desse sol macio
que mal nos chega agora
no esforço de ler a última linha.


segunda-feira, julho 08, 2024


É tão pouco o tempo que temos
talvez por isso saiba a grogue,
a bebida dos condenados,
levamos um gole o mais longe que podemos,
imaginando como seria bom provar ainda
alguma outra coisa, um travo
que abalasse a existência, de tal modo
que a memória nos servisse de alimento 
como uma eternidade dilatando
os poucos dias que nos restam,
poder despedir-se sentindo a realidade 
coincidir uma última vez consigo mesma,
as árvores a respiração a gravidade
uma banheira cheia de água das chuvas
esses sítios assombrados onde os anjos
deixam as suas garatujas nas paredes
e se drogam e depois se desfazem em pó,
nada sabe melhor que esses adeuses
retendo o nome das coisas pouco antes
deste perder o sentido na nossa boca,
de tantos gritos que se engole
ao longo de uma vida
tudo parece alheado, e então 
às vezes olhas para cima e o céu nocturno 
deixa-te a sensação de que todo esse brilho
toda essa dispersão talvez seja
uma lembrança, os miolos espalhados
de um deus que se suicidou,
toda essa luz capturada, esses ecos
sem saída, e de algum modo é possível
que seja este o efeito pretendido
olhar o mundo e a própria infância 
como uma civilização perdida,
e que talvez só por isso nos cause
uma tão grande comoção.



sábado, julho 06, 2024


Os amantes apodrecem como fruta
mordidos abertos desfeitos uns pelos outros 
por insectos pelo sol, em quartos suspensos 
ao lado de igrejas entaipadas,
deixando nos muros esses hieróglifos 
próprios de seres que tresandam
a uma vida secreta, recordam-nos assim
como a beleza foi um susto, agora
que antigas idades nos rechaçam e também 
como mesmo o olhar é um gesto da carne,
como alguém se lança e pela atenção 
se vê mudado, um gole, um de muitos 
e assim prova a medida e o gosto de outro,
e por isso tantas mulheres acabaram
por desfazer-se do enredo traindo a paixão
afinando gestos frios, oferecendo o corpo
sem especial vontade, para que outra 
música viesse, escapavam-se
dizendo mal o próprio nome,
cobrando um preço, aleatório às vezes
e as que se atrevem sabem o exacto peso
de um sorriso, de um olhar que se detém 
quebrando a paz, dessas variações
e tumultos, que um convite, um gesto basta
para que a tensão extrema da corda
a faça cantar ou romper com a vida anterior, 
uma carta e lá vai algum miúdo com ânsia
de perder-se por “caminhos de sirga
invadidos pela sarça e pela hortelã”.
Com essa letra que se ri nas bainhas
da História, o desejo vinca a sua geografia,
esses signos, imagens nocturnas,
tudo o que ganha radiância mal
nos afastamos do idioma,
quando somos absorvidos pela trama
de quem nos tocou um par de vezes
e com isso recompôs para sempre
o perfume do que perseguimos mal
cerramos os olhos.


quinta-feira, julho 04, 2024


A luz não nos obedece, 
talvez fique pelo beicinho duas
ou três vezes a cada década, mas
tem gostos estranhos
algum pintor atraindo-a com gomos de fruta,
tu e os teus álbuns, os restos do filme
a fotografia que me tiraste noutra vida,
esse animal gigantesco que eu fui
e que já deixou de se mexer,
a sua altura oferece-nos a vista
o remorso e a leve trepidação de certas
lembranças, 
ilustra qualquer coisa, 
como a fome nos desfaz, eu sigo
o teu olhar, tenho ciúmes de todos
os homens, sobretudo os que não são 
de cá, e só estão de passagem
tenho a sensação de ter escondida
uma arma, não sei
fico a ver a tua roupa a dançar
a dar voltas na corda ou a ir
e vir sobre as ondas, 
Abro as gavetas mexo nas tuas coisas
atravessada por um alfinete a borboleta 
ainda bate as asas, e o metal
parece arder, a ferrugem tu tens épocas
desconjuntadas aqui, talheres e jóias 
a casa está suja há fadas e baratas
por toda a parte, 
fazes-me falar sem ser claro onde vamos
esta pequena loira nunca me fez perguntas,
desenho-a na parede ao lado da cama
em cada quarto por onde passo,
aí onde se desenrolam as estações,
onde um estilhaço vivo do acaso
atinge a carne que me resta,
os ecos encontram-se, o ouvido
inventa os caminhos que faltam, 
a antiguidade da água,
a fonte perdida onde tenho bebido
o meu reflexo, prometeram-me
que o vinho acabaria por me matar
e agora às horas das visitas vêm ver-me
mas não me falam de ti, escreve-me
diz-me o que tens feito da luz,
aqui todos mastigam tão devagar
ninguém nos serve um copo, o tempo
não passa, é preciso empurrá-lo
com a ajuda dos comprimidos.


domingo, junho 30, 2024

Luís França e a edição literária entre folhos e fólios




 

Por cá temos muito disto, estas aias pavorosas, presunçosas, que trazem a literatura pelo beiço, e se lançam neste género de empreitadas sempre a armar ao pingarelho: capas duras, edições de luxo, tal é o ânimo de passar graxa na coisa, sempre a congeminar algum berloque, traficando nitratos celestes, merdices arrebicadas... Uns bigodaças, que o maior prazer que tiram da vida é revirar as pontas com ar de entendidos, e que atravessam a maior balbúrdia, gesticulando, dizendo-se tomados daquilo, mas só revelam um gosto imoderado pelos efeitos pastel, uns azuis parvos, uns relevos desnecessários, querem fingir um braille não propriamente para cegos, mais para esses que vivem de apalpar edições opulentas. Catam-se uns aos outros em busca do piolho que brilhe feito pepita de oiro, tontos militares dementes nessa adesão aos elementos postiços, vemo-los sempre encavalitados, recitando uns para os outros e para si mesmos esse desfiado louvor de tantas ondas, sempre com os seus acentos circunflexos retirados do cu, e aquela boquinha em ô-ô-ô... Olha-mesta maravilha qu'eu aqui trago... e desembrulham o pano para expôr uma buceta ressecada, mas preciosamente encadernada. E que se faz com aquilo? Nada, é um objecto mais de colecção, mais para emoldurar, para exibir às visitas, para pegar e virar as folhas usando luvas, quase sem respirar. E se há sempre uns curadores da sua própria cagança, uns que têm com a arte esse trato de bicharoco de museu e se deliciam com essas cabeleiras à luís xiv, aquele feltrozinho em redor do punho, depois espantam-se que quem gosta dos livros para escarafunchar, como uma ferida que se abre entre si e o outro, se marimbe para estes enredos empenados, estes modos caprichosos de vir para a literatura gargarejar alegremente os escarros que outros foram soltando de desprezo por gente assim. Aqui vemos esta resmungona mocinha bater pela milésima vez com a porta do salão de baile que lhe ocupa inteiramente o juízo, ela que esperava já ter sido coroada, vemo-la nuns dramas de casa de banho de liceu sempre a mudar de roupa murcha e a enfiar mais outro vestido de tule antes de voltar lá para dentro, para quinze minutos depois estar cá fora outra vez, reclamando que nunca foi beijada. Faz-se de fina, exibindo os primeiros calores, anseia por molhar o corpinho, mas não se quer misturar com as outras, as putas reles, como nos chama, as de estrada, as que o fazem barato, só pelo gozo, e vem-nos com estes truquezitos de perspectiva, desta feita traz o braço erguido e finge que se confessa ao Jarry, impõe-lhe uma série de remendos e grinaldas, as letrinhas debruadas, a talha dourada caindo naquela feiosa água verde e cinzenta, e com aquele sorriso de sopeira e indignação de princesa exige que algum crítico de nomeada (ou nem isso) a despose. Veja-se como a luisinha, com o afrancesado requinte do sobrenome, se acha no direito de vir reclamar dos críticos que não lhe pagam os sumptuários trapos, se atira a este ou àquele que não está para dar o preço de três refeições, ou quatro, pelo livro que ela mandou confeccionar segundo a linha que dizem ser o último grito, esses monos histéricos clamando por um céu que nos rebaixa como leitores a esses ataramelados modos... Quer atenção e faz destes escritores que nos poderiam dizer mais o seu modo de chantagem, mas em vez de nos passar as sementes para as crescermos nós como pudermos, nos nossos canteiros ou até na banheira, no penico, quer impingi-los metidos nestes requintados vasos para promover a oficina de lontras local, que espera fazer vingar o regime de olaria decorativa, as suas loiças torcendo a vista alegre em vista taciturna, limitando-se a encher de enfeites os lautréamont, os rabelais e mais uns que se juntam e, como daquilo só lhes fica a ideia de ruído, trazem os tachos e uns pobres duns instrumentos musicais a que deitam a unha e desfilam o seu barulho incapaz de deixar qualquer rastro, a menor inflexão ou arrepio, fazem barulho porque é essa a única resposta que lhes chega da imaginação, uma vez que neles esta se reduziu a isto: fazerem-se carraças dos cemitérios literários para depois virem exigir que os críticos digam alguma coisa dos seus vestidinhos cheios de folhos. Não, Luís França, não te pagamos para fazeres desta febre héctica outro modo de andar aí a lamber o próprio reflexo nas montras.