terça-feira, julho 29, 2025

O fim do jornal i

 

Na última edição de um jornal diário que ambicionou a ligeireza na profundidade, que soube contestar e romper com os estilos que têm estigmatizado o jornalismo, fazemos um esforço por assinalar a diferença e o carácter único deste título que tantas vezes só foi capaz de resistir porque soube ir buscar forças à sua clandestinidade.


Ia acabar por acontecer. Na verdade, desde que me juntei à redacção, o fim esteve sempre no horizonte, era a notícia que já sabíamos e diariamente fazíamos de tudo para a adiar. Tornou-se até uma forma de coacção e de chantagem de algumas chefias, que se serviam desse horizonte como critério essencial para nos mergulharem num regime de precarização sem saída. Seja como for, o título foi persistindo à custa desses sacrifícios, e muitos dos que mais deram a este jornal já não integram a equipa, empurrados uns, outros deixaram esta guerra, mas o certo é que todos deram um contributo importante para a desratização da espécie dos profetas da desgraça, e deixaram algo de si no rastro imenso de uma sobrevivência sempre ameaçada, sempre em circunstâncias que nos eram desfavoráveis, e se o i se aguentou isso deveu-se à sua força de clandestinidade, quando o seu trabalho tantas vezes era desconsiderado, arrastando uma lenda reaccionária que, apesar dos esforços em contrário, e mesmo se parcial e injusta, não pudemos superar. Assim fomos caluniados, com uma redacção enfrentando pressões de todos os lados, em que tantos resistiam por romantismo ou desespero, que não raras vezes dançam juntos.  
O certo é que, nos 13 anos de vida que eu acompanhei, este jornal sobreviveu a coisas que os seus leitores nem poderiam imaginar, e nem me seria fácil descrever o seu tumultuoso percurso. Até porque tantas das situações com as quais nos vimos confrontados não só nos ultrapassavam como, não sendo nunca explicadas, pareciam ser um aspecto do nosso trabalho, esse de tentar erguer a narrativa a partir de rumores, sendo que, para agora consolidar tudo isso, o esforço exigiria perícias forenses para as quais não estou habilitado. Mas se o único zodíaco veraz nestas coisas é o dinheiro, recompor essa astrologia serviria para nos dar uma complexa teia sobre os enredos financeiros que se digladiaram e entrecruzaram num período de grande agitação nos bastidores da nossa vida política.  
A verdade é que, neste século, a imprensa deixou de ser o quarto poder, e viu-se inteiramente absorvida pela malha dos interesses de ordem financeira e especulativa; e justamente quando os nossos responsáveis políticos brandiam os valores da democracia, tudo faziam para degradar qualquer possibilidade de a imprensa recuperar as receitas que tinham sido perdidas para as grandes corporações tecnológicas. Se depois do Estado Novo tivemos algum tempo para intestinar o fascismo, e o país estava esfomeado de política, após décadas de oficialidade, que, como assinala Francisco Umbral, é precisamente o oposto da política, logo depois, colocando os seus ao longo da fronteira com o jornalismo e preparando a infiltração, a vida partidária cedo quis assumir contornos de telenovela, numa pornopolítica constante em que os seus protagonistas procuravam estar metidos nos jornais, dominar o que ali se dizia e, às tantas, já nem se discutiam propriamente ideias nestes, mas apenas homens, uma classe que, no fundo, sempre abominou a possibilidade de um jornalismo de feição romântica, que traduzisse para nativo as tramoias engenhocadas por esta classe nos bastidores, fazendo-lhe uma barragem, tomando para si a herança do espírito de guerra e de crítica, sem aquele oportunismo que degrada a classe e a torna dócil, funcionária. Então, configurada como campo de resistências várias, a típica redacção aparece-nos descrita por Tom Wolfe, no texto introdutório da antologia recolhida por ele e por E.W. Johnson de alguns textos canónicos do New Journalism, como o sonho de qualquer inquilino, um espaço que não está dividido por paredes interiores e em que a hierarquia corporativa não se reconhece pela distribuição ou pelo tamanho dos gabinetes. “O redactor principal trabalhava num espaço tão miserável e encascado como o mais rasteiro dos repórteres. A maioria dos jornais era assim. Esta disposição fora instituída há décadas por razões práticas. Mas era mantida viva por um facto curioso: nos jornais, muito poucos funcionários editoriais da base — nomeadamente, os repórteres — tinham qualquer ambição de subir, de se tornarem editores da cidade, redactores principais, directores ou qualquer outra dessas figuras. Os editores não sentiam ameaças vindas de baixo. Não precisavam de paredes. Os repórteres não queriam muito... apenas ser estrelas, e de um brilho tão mínimo, tão pobre, que nem para candeeiro de parede servia!”  
Não foi exactamente isto que eu encontrei quando descobri a imensa nave que o i começou por ocupar no Tagus Park, pois eram instalações soberbas, demasiado dignas para pôr à vontade esses vagabundos celestes que se orientam para autênticas conspirações, mas a possibilidade estava lá. Aberto desde muito cedo, num expediente que se prolongava até altas horas, era um espaço indeterminado, suspenso e, à medida que o dia avançava, que a redação se recompunha pouco antes da hora de almoço, começava a parecer-se com um organismo vivo, dotado de vontade própria. Não era apenas um lugar físico, um sítio laborioso, uma vez que se orientava para a criação de circuitos e eixos sensíveis, traduzindo-se numa força anímica onde podíamos sempre ir beber, regenerar os nossos ímpetos, estando sempre a tremer no ar do dia seguinte. E este, se podia ser leve nas primeiras horas do dia, ia ficando cada vez mais carregado, grave, tenso, à medida que a hora do fecho se aproximava. Então o martelar dos teclados tornava-se frenético como tambores produzindo um avistamento, uma inquietação fenomenal. Criava-se ali uma atmosfera instigante, onde havia espaço para grandes dissonâncias, embates, intrigas, ciumeiras, mas também para essa colaboração que marca uma verdadeira aventura intelectual à revelia de negócios e oportunismos, e que nos permitia espreitar as diferentes atitudes e estratégias para atingir de vários lados um mesmo problema. Isso reconciliava-nos uma e outra vez com o que ali estávamos a fazer. E posso mesmo afirmar que, nos seus melhores momentos, trabalhámos empenhadamente para “outorgar ao quotidiano a dignidade do desconhecido” (Novalis).  
O projecto nascera uns três anos antes de eu me juntar à equipa, sendo que, curiosamente, tinha sido chamado para participar num desses estudos de mercado, integrando um grupo a quem foi dada a possibilidade de ler o número zero, discutindo aspectos como o estilo da escrita, a abordagem, a dimensão dos artigos, os elementos gráficos e de composição, o preço. Mas foi só depois que vim a descobrir o tempo íntimo, a incrível velocidade a que operava aquele diário, a sua rebaldaria contagiante, aquela equipa cheia de contrastes, distintas vivências sociais, com a frescura e a inocência de uns, sendo composta por gente que foi testada e levada ao limite num árduo processo de captação de talento estilo NASA. Já eu fui metido à experiência, sem ganhar nada ao longo dos primeiros meses, enquanto se esperava que ganhasse umas noções. Fizeram-me a vida negra, sobretudo enquanto integrei a secção de sociedade, e antes de o António Rodrigues no internacional ter iniciado verdadeiramente a minha formação e ajudado a que pudesse integrar a equipa. Passariam, entretanto, uns cinco anos antes de que, por decisão da Ana Sá Lopes, fosse chamado para integrar a secção de cultura, para a qual já ia colaborando com textos de crítica literária. Mas se inicialmente tinha uma visão meio fascinada do jornalismo, ainda que percebesse já como, em muitos aspectos, este participava dos álibis culturais e desse regime poluente a todos os níveis da nossa vida pública, estas noções amadureceram e, apesar do desastre total que hoje deixa claro como o jornalismo, essa profissão sem a qual não há qualquer possibilidade de sedição ou de compreensão sequer do tempo ou do lugar em que coincidimos, apesar de ter assistido como tudo foi feito para levar esta profissão a uma condição dependente e moribunda, não se desluziu o encanto, e pude admirar personagens e tipos espantosos, audazes, raros, frágeis, complicados, uns sempre sacudindo cinzas, com olheiras até aos joelhos, e outros sempre meio exaltados, levando cada tarefa com o ânimo de alguém a quem fora dada a oportunidade de fazer algo que sempre ambicionara. E ali andávamos naquela hora confusa, a vivê-la como perdidos, mas o que conheci e me impressionou sobretudo foi a quantidade de mulheres, boa parte delas mais novas que eu, de uma inteligência e de um carácter, uma disponibilidade e uma competência que explicavam detalhadamente como o mundo encontra sempre formas de renovar-se. A Marta, a Sílvia, a Ana, a Mariana, a Joana, a Rita, a Beatriz… Não direi mais para não invadir o seu espaço com homenagens abruptas que ninguém me encomendou. Da mesma forma que não vou fazer mira ao número de canalhas, arrivistas ou à jagunçada que limitou sempre o alcance do jornal e o nosso esforço de romper com a cadeia de submissões. Pois se houve gente que passou ali absurdamente talentosa, e que depois foi captada e veio a abrilhantar outros projectos, também não nos faltou uma boa dose desses cadáveres ambíguos que infestam a paisagem mediática, mas, em contraponto com a mediocridade em parada e os colaboracionismos à sorrelfa que todos conhecemos, se uns andavam ocupados a garantir as suas posições, houve margem também para uma ofensiva que ia de alvo em alvo, num traço meditado e explosivo, levando a cabo a tarefa de congeminar esse prazer vigilante que deve gerar-se em quem abre um jornal, criando novas zonas de leitura e de apreensão, encontrando uma linguagem, capaz de abrir o olhar, dilatar a perspectiva, sublinhando as possibilidades concretas de resistência.  
Assim, no momento em que o i morre enquanto título autónomo, sou forçado a regressar ao ponto donde partimos e conhecer esse lugar pela primeira vez, aquela redacção onde fui entrando meio assustado, onde tive de lutar para ser admitido, e aprendi que só assim se consegue erguer um projecto de transformação seja do que for, nesse quotidiano que trabalha para fundar uma outra relação, romper com os estilos definidos, trabalhar aquela espécie de motim continuado, uma realidade dinâmica, com gente informada, sagaz, atarefada, formando essa matilha fantasmática. O que ainda me assombra é toda aquela coreografia, e depois a trajectória absurda até ficarmos reduzidos à tripulação de um escaler. E como, mesmo através da pandemia, conseguimos fazer uma edição diária, a qual muitas vezes já nem chegava às bancas, e se tornou assim uma espécie de género literária do fantástico, com os seus uivos-fantasma, tentando manter aquele chinfrim colectivo, quando não éramos mais que um punhado de marinheiros exaustos a tentar manter-nos à tona, com baldes para arrancar a água que prometia afundar-nos, a flutuarmos meio à deriva, e a dançar sem música, numa festa delirante que nunca mais tinha fim. Foi essa espécie de resistência alucinada que nos levou a conhecer o que possa ser essa mistura de exaltação e abandono que é necessária para uma aproximação do infinito. Poderíamos ter continuado a produzir um jornal diário pela eternidade fora, e a redacção seria o nosso hospício, onde tentaríamos captar algo da tumultuosa agitação do universo, vivendo entre fumos, entre o fumo da História e o da actualidade, apreciando as velhas cicatrizes e o cautério aplicado sobre as feridas recentes, empenhados ainda em tudo fazer para que um outro galo nos cantasse amanhã. Aquilo tinha-se tornado uma forma de aquiescência, apaziguadora e excitante, um transbordamento e uma libertação, uma contemplação, a resposta a um esforço de redigir diariamente notícias de um país mesmo que este parecesse ter sido desinventado. Assim o jornalismo começava a parecer-se com uma tarefa anacrónica, utópica, um esforço para estender o coração para longe do tempo, de um tempo em que a crença na realidade se tornou uma forma de quixotismo.  
Hoje, os que buscam conhecer o mundo são os verdadeiros agentes patológicos, os seres tidos como românticos, mantendo essa confiança expectante e procurando restituir elementos que possam gerar uma sublevação. O que vim a descobrir ali foi como, neste “país de longa e vendida infância” (Cardoso Pires), tantos anos depois de Abril, no fundo ainda vivemos numa sociedade silenciosa, pois se nos livrámos da censura salazarista, em alguns aspectos tão tosca e fácil de burlar, caímos numa rede de censuras plurais e bem mais complexas e difusas, que vão desde a censura dos partidos, da publicidade, do capricho das sucessivas administrações e, muitas vezes, do ressentimento ou das intrigas entre essas figuras informes que dão orientações e transmitem os constragimentos e ocupam os cargos de administração. Os jornais, hoje, não servem já qualquer função de levantamento, respondendo a desejos extremos, nem a essas profundezas ignoradas, ao que se esconde nas últimas moradas do sangue e que é preciso acordar uma e outra vez. É a falta desse esforço para se subir por dentro, para assumir uma perspectiva mais ampla, para alargar e dilatar o mundo em torno de nós, inserindo-nos no seu ritmo, é isso o que deu cabo do jornalismo.  
Deste modo, com a derrota do quarto poder e, particularmente, com a degeneração total da imprensa escrita, o que aconteceu foi que a mentira política deixou de ser um simples recurso demagógico ou um instrumento de convicção, passando a actuar como um stress social. Enquanto as estruturas políticas conservadoras se obstinavam em preservar o sistema censorial como margem de segurança, não se dando conta de que assinavam a sua sentença, chegámos àquele ponto em que a democracia entra numa espiral enlouquecida, se entrega à esparrela, começando a trabalhar contra si mesma, a definhar, enquanto a histeria toma conta das consciências. Nesta hora soa uma espécie de clarim, e emergem das profundezas os seres mais ressentidos, os mais inescrupulosos, esses que são capazes de excitar o furor persecutório e de baixar ainda a outro e outro nível até que, em nome da restituição da ordem, o quotidiano cede à violência mais despudorada. Se, por uns anos, parecíamos estar todos satisfeitos com uma democracia teatral, que bem serviu para entreter quando o país beneficiava dos apoios estruturais, dessa espécie de suborno enquanto nos adaptávamos à condição de zona periférica, de país subalterno (desenvolvendo uma imensa colmeia burocrática e formando legiões de empregados de mesa), a nossa classe dirigente esteve ocupada a favorecer as formas de saque de todas as estruturas que sustentavam o país enquanto coisa pública e comum. Vencida a exaltação e extraordinária mobilização popular que o período revolucionário gerou, essa classe dominante logo se empenhou em repor o quadro de apatia política, refazer a censura como a verdadeira sintaxe do pensamento colectivo, “uma autêntica profilaxia do Estado que não visava apenas controlar mas criar formas de mentalidade adaptadas ao poder” (Cardoso Pires). Assim, com meio século de uma democracia que adquiriu todas as doenças da velhice sem ter sido propriamente jovem ou adulta, a ameaça vem de novo da tendência para instalação de novos fascismos, com a censura e a violência articuladas e legitimadas pelas mentiras, as ficções e os pavores, os quais, ainda que injustificados, conseguem criar esses estados de espírito que são realidades políticas e promovem a nossa infantilização e o abandono à tutela do Estado autocrático, que passa a determinar um horizonte que a todos nos amesquinha. Pelo que, num país em que tantas gerações nasceram no escuro e foram educadas para o medo, por falta de órgãos que fizessem as partes comunicar entre si, é doloroso assistir à forma como este permitiu que o devolvessem a essa menoridade, enchendo-se de alergias da consciência, e permitindo que uma raça de oportunistas excitasse os seus piores sentimentos, virando todos contra todos. Regressamos aos juízos retardados, somos dominados pela economia do ressentimento, por uma estrutura de conflito aberto, num todos contra todos, quando aquilo de que mais precisávamos era de um jornalismo que nos devolvesse algum discernimento, que se aplicasse nesse movimento de crítica impiedosa e agora, mais do que nunca, necessário, uma vez que as nossas cidades estão a transformar-se em cárceres ou labirintos dos quais perdemos a chave.  
Na secção em que tive mais responsabilidades, a da cultura, foi isso o que procurámos fazer: impugnar o dirigismo cultural, a composição esclerótica de uma classe que se serve de adornos embusteiros para evitar por todos os meios a autocrítica e que se integrou, de forma servil, no esquema oportunista, procurando safar-se com as migalhas que eram sacudidas da grande mesa para o chão, de forma a obter a solicitude e o conformismo dessa fulanada entretida com os seus prestígios. Mas nunca ninguém teve grandes dúvidas sobre o que era preciso, sobre como o esforço para se erguer uma nova pátria deveria começar pelas redacções, financiadas através de uma lógica de taxação severa sobre as tais indústrias de manipulação das consciências e que canibalizaram, nas últimas duas décadas, toda a receita dos órgãos de informação. Seria preciso que voltassem às redacções aquelas miúdas e miúdos que eu vi darem a este jornal os melhores anos da sua vida, pondo em risco qualquer projecto de vida íntima, relações pessoais, familiares, e não para continuar a ser-lhes exigido o mesmo desgaste, a mesma profissão de fé arrasadora. Quer dizer, gostaria de ver as melhores mentes da minha geração reunidas num espaço imenso, a dilatar inefavelmente essa impressão que temos do mundo ao nosso redor e a ensinar a escrever e até a pensar este país com o seu regime ágrafo: jornalistas com a ossatura de escritores, de detectives, os tais vagabundos com o brio e a ambição desmesurada de irradiarem uma luz que motive uma sublevação extraordinária, lançando-se nessas viagens vertiginosas e pontuais ao mesmo tempo, treinando esse livro solvente com um estilo de desaforos e erros, um tom irrepetível.  
É para isso que servem os jornais: para os erros únicos, aqueles que nos são próprios, que demarcam um tempo e um lugar, e sem os quais um país não cresce por si mesmo, mas vive sob a tutela de outros. O fim do i não é o fim de uma ilusão, mas serve para assinalar o quão longe estamos dela e como se perdeu essa velha artesania de redigir artigos para a imprensa que quisessem fazer mais do que vir dar alguma notícia. O importante era o foco, o pacto, a cumplicidade com o leitor. De outro modo damos com esses fósseis que nos vêm contar o mundo, e tudo nos sabe a ranço, tudo parece processado, enlatado, como essa prosa pretensamente objectiva com que nos desgastam, com as habituais fórmulas a que recorre toda a espécie de asnos solenes, esse modo simples, desnatado, de escrever, tocando os tópicos já exaustos, os refrões, as frases feitas, lugares-comuns e vulgaridades anexas que constituem o repertório destes badamecos e moços de recados que vão enchendo as redacções. Estas que restam apenas como fábricas de propaganda e nas quais esses grumetes acham que estão a fazer o seu trabalho porque enxertam elementos estatísticos, ou disputam detalhes nas leituras oficiais, mas, no fundo, exprimem ou adensam a confusão geral, a inércia a que fomos levados num deleite de autocontemplação, porém sempre com noções corrompidas e ociosas. Pois por mais dados, por muito que desafiem a narrativa oficial, ainda não inventaram uma linguagem própria, uma autonomia, a sua força clandestina, algo que possa contrariar essa praga dirigida que continua a operar na maioria dos cadernos, trabalhando para o efeito de salivação com os consumos, para impingir sempre novos produtos, mais algum profeta ou guru, o oportunista da hora. “O mundo está ensurdecido pela cadência”, notava Karl Kraus. “Estou convencido de que as coisas já nem sequer acontecem, antes continuando os clichés a trabalhar sozinhos. (…) A coisa está podre por obra da linguagem. O tempo já cheira mal de tanta frase feita.” E isto porque nos recusamos a viver com algum risco, num país aberto à crítica, que faça desta um ritual tenebroso e exigente, e não um mero vício formal, ficando-se pelo arranhar da ferida apenas para entreter o erro.  
Se estamos condenados a um enredo que nos empurra para a frente sem descanso, Kraus lembra que “a fraude que se deixou enganar é a última anedota que ocorre a uma cultura desafinada”. E se nem somos capazes de buscar inspiração e nos reerguer a partir dos exemplos da nossa história recente, dos elementos mais combativos e que tanto fizeram nas redacções por evitar esta profanação do jornalismo, então faríamos bem em lembrar como “a fealdade do tempo presente tem efeitos retroactivos”. Assim, mesmo aqueles que procuram preservar os símbolos e a História, deverão entender que tudo acabará por escoar pelo mesmo ralo. É um imperativo, seja qual for a inclinação ideológica que se tenha, criar as condições para que surjam órgãos autónomos, projectos editoriais robustos, onde se possa ler todo o tipo de propostas de narração, de crónica, e não apenas esse comentarismo parasitário que vive de propagar aquela cadência esgotante. São precisas falhas de energia, espaços onde se possa recompor essa suspensão, ler aquela prosa com pólvora e que se vai salvando dos rigores quanto à vigilância do colesterol. A ideia seria deixar o talento em bruto, agarrado ao ímpeto, à urgência, como um astro embriagado a tentar queimar a página onde foi inscrito, e beneficiando com uma vista profunda sobre a catedral literária, e igualmente de uma boa distância face aos mármores oficiais, a essa sombra de tédio com que nos maçam aquelas traças que, em vez de luz desgarrada e própria, se concentram nas fontes de calor e luz que emitem as zonas de poder.  
O jornalismo é uma prática exploratória, gémea das artes, não é uma zona fria, protocolar, mas deve estar disponível para ser repensada, para captar aquela música que só esses poucos que têm os ouvidos já viciados nas selvajarias literárias conseguem aproveitar. Quiseram fazer do jornalismo uma condição subserviente. Foi por isso que nos venderam os discursos do método, e a degradaram como uma mera indústria técnica. Ora, o jornalismo sempre dependeu da ficção, desse talento para gerar formas, traduzir e interpretar a realidade. Mas quiseram impor-nos a patranha da objectividade, como se todos pudéssemos concordar sobre o que é real. E agora que já ninguém opera dentro do mesmo quadro e com os mesmos factos, estão em apuros, porque não sabem restituir o sentido, criando uma linguagem que gere uma nova ficção coesa. E não o sabem fazer porque lhes repugnava a liberdade dos escritores, quiseram enxotá-los das redacções, mesmo o género da crónica foi inteiramente cedido ao bando de aves necrófagas que cercam o cadáver de cada dia. Ora, como bem sabemos, o escritor digno desse nome, neste país, nunca passou da condição de um herege, e nisso também se distingue daqueles que, hoje, são incessantemente alvo do panegírico das nossas páginas de cultura, o tipo de escribas que adaptam os géneros canónicos à prosa dominical que se lê nos jornais, e que, com as suas récitas morais, toma parte na grande missa que continua a apaziguar as tensões mais promissores que ameaçam as redes do poder.  
Este tempo, que se abastardou nas formas de escapismo de um lazer que nos treina para a impotência e para a total ineptidão, em termos de convívio, de gerar focos conspirativos, este tempo continua à espera, buscando mal e nos lugares errados as metáforas atrozes que lhe façam sentir a sua verdadeira condição. O jornal i não fez tanto quanto podia ter feito, mas foi o único jornal que nos últimos anos se aproximou dessa condição experimental, com o seu tom desassombrado, nuns momentos mais irónico, noutros frívolo, mas esforçado, feito sem o peso de se achar o centro deste mundo ou de outro, sem o pedantismo que é típico dos nossos jornais tidos por órgãos de referência e que, na verdade, são precisamente os alvos abater no momento em que surjam órgãos de comunicação para nos falar de uma realidade que começará por soar como uma ficção hostil, desavergonhada, sobre o país que esteve à beira de um privatização de tal ordem que até os espíritos já só balbuciavam números, se algarismavam, incapazes de sustentar esse estremecimento que carregam em si as palavras.

segunda-feira, julho 21, 2025

O Jornal de Letras, sob o signo da agonia

 

Está bem, porra, falemos então desse cadáver na única altura em que parece estar quente: o Jornal de Letras, espécie de dinossauro com tamanho e atitude de pulga, e, por isso mesmo, tão fabulosamente adaptado às condições do meio, tendo sobrevivido por tempo demais (quarenta e cinco outonos, tanta folha amarelecida a bloquear as goteiras), e graças desde logo à sua irrelevância, tendo-se tornado nos últimos vinte, com aquelas varizes que já se lhes via na cara, uma espécie de boletim paroquial da cultura institucional, esbanjando o incenso da reverência, aquela ânsia sabuja de se pôr ao serviço, comerciar favores, oferecer recreio para o engodo publicitário, treinar o livro de estilo vassalo, cheio de mesuras, com aquela lengalenga untuosa. Ali estava uma instância de estágio essencial a qualquer carreira orientada para fazer o frete a torto e a direito, apontando ao Olimpo dos tarecos, numa escalada a afinar a língua pelo orifício de quem segue à frente, esse ritual incessante de quem vai sempre a favor da corrente e com a língua a remar. O destino da coisa estava há muito selado, e agora aquela agonia soa à falência da nossa funerária das letras, um sexto acto de uma peça arrastada, como convém aos espectáculos de fachada em que nada morre verdadeiramente — apenas muda de pasta ou de promotor. Nas últimas décadas, o JL desfizera-se inteiramente da função crítica, actuante, polémica, que o poderia ter mantido vivo, mas vivo, e não aí só a servir de realejo sempre com aquela modinha para compor o desarranjo em fundo. Preferiu o regime da mão estendida, bater com o pires em todas as colectas, ser a folha dos arranjinhos, da forma mais despudorada, e sem ao menos ter um capítulo de classificados para o mais proveitoso e desassombrado comércio da carne. Era o nosso jornal de cerimónias, onde as castas rameiras da cena cultural afogavam a madalena dando-se aquele chá de relva, coçando as costas umas das outras sob o pretexto da divulgação. Escrevia-se sempre com luvas: tudo era «notável», «imperdível», «inestimável» — adjectivação automática ao serviço de um consenso mole. O espaço para o dissenso, para a fricção, para a polémica, só lendo à lupa nas entrelinhas. Não faltava era superfície para anunciantes, para o exercício da crónica vaidosa, a entrevista obsequiosa, a promoção de eventos desses que provocam logo o bocejo ou, na melhor das hipóteses, a risota perante o desespero dos mesmos em comparecer diante dos funcionários de arquivos e bibliotecas, dos vigilantes de buracos com gavetas cheias de fichas ilegíveis e fungos, das bezerras mal mortas, dos algaliados arrastados daqui para além ao sabor dos humores de obscuros gabinetes, dos putos das C+S de Alcolhões ou Alcaguideche, enfiados num autocarro e despejados sempre que é necessário justificar despesas com os "nossos" agentes culturais. Era, enfim, um jornal para essas letras atarantadas, sem instinto ou urgência, sem unhas nem dentes, letras como dentaduras postiças, tretas, balelas, lérias, água de colónia feita de bichos da prata esmagados, uma ideia de cultura que apenas serve a reprodução dos tiques de uma manada complacente. E mereceu bem aquilo que lhe foi feito, como se desfizeram deste título entre outros, e o seu fim inscreve-se numa operação mais vasta e que merecia servir a um grande estudo de caso quanto ao Esquema, à disciplina para enredar tansos, uma manobra que, não por acaso, nunca vimos denunciada naquelas páginas, e que foi orquestrada com precisão por essa corporação-múmia que é a Impresa, onde nada é feito ao acaso. A pseudo-venda dos títulos à entidade fantasma Trust in News não passou de um jogo de espelhos, um estratagema para poupar a Impresa à vergonha do desmantelamento. A encenação permitiu-lhes amputar os membros menos apetecíveis daquele cabaz editorial sem deixar o cheiro a putrefacção colar-se aos títulos e negócios centrais do império Balsemão. Foi um descarte higiénico, mas não menos brutal por isso: cortou-se o tubo da ventilação ao JL e a outros títulos, uns de feição mais jornalística, outros exigindo mais do panetone publicitário, e nada se orientou por uma questão de princípios, mas por necessidade de fazer o abate longe de casa, para não ouvir o ganido, os balidos dos inocentes. O Balsemão dava muitas aulas de comunicação a estes cordeiros, mas o que teria interesse era ouvi-lo explanar sobre aspectos de gestão e cálculo quanto a possíveis danos reputacionais. Ficava mal na autobiografia e auto-hagiografia acabar com uma cena em que o grande fundador tinha o dedo no botão da maior incineradora de títulos de imprensa. Quanto ao JL, este não morrerá, não exactamente, pois tem de haver uma folheca de supermercado para as promoções na ala da "cultura standard", um andar modelo para servir de pastagem aos bonzos que se vão safando à margem do frenesi do matadouro e das nuvens de sucessivas desratizações. Alguma outra coisa igualmente bolorenta há-de surgir para colher e enxertar a publicidade institucional, os mil e um esquemas para distribuir as verbas autárquicas, para justificar as políticas áulicas que dão jeito nem que seja para calar uns e obter de outros a sua placidez conformista. Assim, o jornal não se fina, vai refinar-se, e daqui por uns tempos já aí andará outro panfleto com as fuças dos mesmos, essas colecções outono-e-tanas que entram e saem sempre na mesma, como é próprio dos pavões, com aquela histeria a encher os jardins onde não há crianças em número suficiente para afinar a pontaria e expor estes irritantes galináceos. Felizmente, é o fim da linha para o Vasconcelos, nome que sempre me pareceu bom para baptizarmos em sua honra um instrumento de cordas lassas ou uma doença nos tomates. Basta ir ler a última crónica do bicho, mais um suspiro abafado, e um silêncio cúmplice, a rezar e a ver se ainda o safam, se o balão de soro pinga ainda mais qualquer coisa. E se anda para aí a turma das carpideiras do costume, a lamentar o ponto a qu'isto chegou, estas a fungar-se todas e encher as mangas de ranho, isso já é um traço da natureza da cultura oficial, que, quando não mama, só lhe resta chorar.


 

sexta-feira, julho 11, 2025

 

Nalgum canto, um vestígio
do reino esquecido.
Julio Cortázar

 


Fala baixo, fala miúdo
diz-lhes adeus muitas vezes antes
de começares, pisa um galho
para alarmar a noite e sentir como pode
ainda ser vasta, faz à fome
um sinal, e aquilo que vive de nós
virá dos seus passeios, como por vezes
se ouve por aí, meio desvairada
ávida de distâncias, digerindo
o que nos escapa,
a música dos que se afastam,
dos desaparecidos, 
lembra-te desses corpos vagos
e vibrantes muitos aos pedaços 
rascunhos cheios de talento
que tomavam o balanço a febre se um
impulso os mordesse, sabendo bem
como a odisseia ainda foram primeiro 
as cicatrizes, o nome dado a cada
uma, como este e aquele (mais tarde
reunidos numa só voz) fizeram inversamente
o percurso, revestindo a dor,
suportando o florescer dos pormenores,
inábeis num momento noutro já 
ardilosamente infiéis, íntimos da falha
do impossível, narram então
com delícia e verdadeiro horror, aprendem
como no final de contas a guerra
é apenas um modo de falar,
a meio quem fala bebe um copo
de água, assim o mar na descrição 
ganha a cor do vinho,
alimentam-se das imagens raras
sugeridas por todos os que ficaram e
agora deliram, rasgando a língua
materna, e se esta mordia o lábio 
enquanto costurava, a agulha
exigindo a firme lentidão, a história 
vem e precipita tudo, quem faz
o caminho de volta não protege a memória 
abandona-a ao assombro, à invenção 
de quem nunca irá, regressa
traz a lenda, os ecos de línguas absurdas
e é do balanço destas que nasce a folga, 
a paixão dos que vão inventar
corpos urgentes, mordendo provando
olham com um tal desafio os outros
desfeitos pela demora, 
e se não sabem o suficiente 
dos idiomas do pó, preferem os
detalhes agressivos, doentes,
que nos impedem de chegar ao todo.



quarta-feira, julho 02, 2025


Ir para a fronteira, a linha mais crua a mais
longínqua, a dos ritmos que soam
do outro lado da cordilheira, como sinais 
de fumo. Nós tivemos de esperar anos antes 
que o lume do canto cozesse 
tudo o que lhe demos, que confiança 
havia nesses gestos propagados
ao longo de gerações, foi antes
de se falar de um, não começava aí 
mas por impressões e substantivos 
em vias de desaparecimento, terras virgens
restos alucinados, uns quantos bicos
de pássaros e o vento tingido
de um sabor a carne,
nada foi desperdiçado, nada se erodiu.
Os nomes que nos pedem as coisas
admiráveis, dolorosas, tudo isso
como uma língua que só se fala no escuro
explica porque se beijam na boca os poetas
e se reconhecem sós, enquanto
outros fazem-no por imitação
e teatro. De corpo a corpo
verte-se a alegria, como a flauta
que o russo fez a partir das vértebras,
dando aquele concerto antes de matar-se.
Em segredo, tantos o escutaram.
O vento começara a morrer,
tínhamos perdido o sul, as luzes ecoando
sobre as águas, depois de um ponto
nenhum grito sobrevive mais que uns dias
Os pássaros não pousam,
tudo fica pendurado, mesmo cá dentro.
Uma chamada cobre a mais longa
distância, cheia de cortes, 
e se mal abrimos a boca, ouvimos mais
e cada detalhe ferve a imaginação.
Se alguém dissesse a palavra
de que precisamos, se cada homem
valesse pelo último, comendo pela última vez
o bolo de gengibre dispersando as aparas
ao pegar na chávena beber um gole
sentindo a dignidade dessa luz,
dos cinco minutos que se seguem.
Deixa as janelas repletas de versos,
como se erguesse o próprio crânio, mas
para quem?, e as sequências que regista
serão os estorninhos, a beleza que precisa
de tradução apenas para morrer duas vezes?


segunda-feira, junho 16, 2025


Ainda seguimos os fogos
cultivados de noite por homens que lêem
para se salvar
temos lido uns para os outros
na busca das coisas mais ofensivas,
tudo quanto possa
compensar-nos destas vidas,
da total falta de brilho da época.

Já não temos clientes, e agora só 
atraímos os indígenas do fundo do poço.
Tocamos o vidro e as mãos, fazemos 
perguntas, olhamo-nos
pelo reflexo,
acenamos a esses estranhos
prestes a serem esquecidos.
Parece uma boa altura para beber
com verdadeiro afinco,
despenhar-me junto dos vasos,
arrastar-me pela casa como uma estrela
moribunda, abrir a janela e
pedir milagres, ouvir o vento dizer
que sim.

Ponho os envelopes na mesa, leio
os cantos das cartas,
das fotografias, vejo o quarto como era
quando ela deslocava sinais na pele
como lhe apetecia,
e falava baixo, gerando um favor
silencioso ao seu redor.

Não retirávamos as flores antes
de se parecerem com fósforos ardidos.
A essa luz vi o avesso do mundo, e fui
a sensação de ser miúdo já tarde,
de nos ouvir tão próximos os passos
compondo a noite, decorando detalhes,
e depois lendo as cartas ressuscitei
a mesma chama sagrada
e parece-me que ainda nos oiço falar
uma língua cada vez mais estranha,
e gosto de medir a expansão do universo
através desta distância.



segunda-feira, junho 02, 2025


Ela muda-se a um canto
sem se importar que eu veja,
e eu vejo
siderado com cada linha,
tão pálida que lhe posso ver os órgãos,
vai demorar uns dois meses ainda 
para que conte com as minhas mãos,
e mesmo então 
não vamos passar dos lábios,
trocamos bilhetes, frases impossíveis 
de serem levadas a um sentido,
e logo assinamos a noite por mais
desfeita que nos surja. Nesta cidade
não há bares onde nos possamos
pendurar nalgum piano, numa voz
que cante velhos refrões, que cante o resto
o chuvisco das vagas, as sombras órfãs 
esse outro mundo que a aranha
trafica ao lado da cama em nosso nome. 
Fazemos de loucos, dos que têm
a memória aberta, indo por conversas
longas e ferozes como os séculos,
debruçados sob um tabuleiro
com esses escaravelhos negros
que guardam a luz dos astros.
Apontam, tocam sem descanso 
música nenhuma, 
ali onde tudo foi entornado vive
ainda fresco um reflexo antigo,
esse país a que virámos costas,
esse contorno a giz que quisemos
apagar com os punhos.
Enquanto houver algo de sonoro
em nós, deve valer a pena,
podemos estudar os horários
dos comboios, filmar nuvens, as horas,
raspar o esqueleto do pardal monstruoso
do fundo da gaveta, e com gestos
pouco práticos, sem alcance
respondermos em voz baixa anos depois
 às piores coisas que nos disseram.
Em breve os anos e as flores
estarão proibidos. E depois?
Que fizeste da tua fidelidade? Que fiz eu
guiado pelo cheiro de outro corpo?
Andei por estranhos quartos e
a membrana do coração despegou-se. Hoje 
tenho pouco, nestas alturas só mesmo 
uma palavra: inferno. Mas se vissem
quanto deste mundo fui arrastando
para lá

terça-feira, maio 06, 2025


Já não há lugares proibidos, vamos
e connosco vem uma espécie de terror 
de frieza alucinante, essa
das grandes distâncias, das eras
que nos defendem e separam.
Há palavras capazes de pôr ordem
às tempestades, e outras que arrancam 
qualquer reflexo ou eco deste mundo
deixando um rosto vazio de si mesmo.
Nas paredes de alguns refúgios destruídos 
ainda se lê a magia dessas frases.
Deixamos este pingar demente de épocas 
entregues à ressaca e vamos
cosendo as noites entre si, 
colhemos à superfície de uma vida veloz
detalhes frescos rudes absurdos,
deixamos e sofremos as marcas,
toda a ausência que se pode suportar,
também pelo prazer de nos sentirmos 
longínquos, avistados uns pelos outros
mas tão incertamente
e a meio de raras metamorfoses.
A noite pode ter sido tudo
o que exigimos da vida,
e como era doce então sair da cama
olhar algum vestido desfeito por mãos
apressadas, sentir o mijo bater
na água e desfazer todos os contos de fada.
Apreciar o vulgar afecto que trocamos
como alegres anjos retardados,
seguindo na pele uns dos outros o brilho 
dessas luas a atravessar os lagos desertos.
Algum de nós pôde deitar-se com Joyce 
Mansour, mordeu-lhe o lábio inferior
com vontade de o desmanchar para sempre,
outro aproveitou-se o mais que pôde
de Colette, mas elas e outras 
também nunca nos deixaram sair vivos
desses quartos. E neles descobrimos
juntos como os corpos são apenas
tão belos quanto a dor que os espera.
Depois as histórias prolongam-se
livrando-se de qualquer sentido,
dando cabo de todas as ilusões.
Os que ouvem, já sabem e riem…
Como os beijos morrem tão depressa, 
e as bocas duram menos que um segredo.
Mais tarde algum covarde dirá o pior
dos que se amaram.
E terá toda a razão. Mas só contará 
as migalhas, só verá o que tem
ao seu alcance. Falámos tão baixo,
tínhamos essa pouca voz de quem
se despede, de quem arranca à carne
cada um dos frutos, a dor, a própria fome.
Afinal, o paraíso fica tão perto do inferno, 
mas isto só o sabem os poucos
capazes de ir e voltar.


domingo, abril 27, 2025


O caminho vai ficando estreito, 
amanhecerá mais um punhado de vezes
e outras por favor, mas só resta uma substância 
insegura, sem a menor intenção, e depois
o ocasional amanhecer marinho, largo, 
e alguém talvez se esforce por traduzir 
as memórias do vento, salvar um parafuso
do carrossel desfeito, a impressão de um 
soluço mecânico. Assobiamos os caminhos 
estas estradas, mesmo as borras tipográficas,
admiramos uns tantos que preferem viver sem 
pontuação, espiando o acaso,
a melodiosa intriga de uma paisagem
suspensa, esses lugares onde a realidade 
parece inacabada. Um dia perderemos 
a relação com o tempo, às vezes eu
já gosto de lamber a faca ao fim de dias,
tantos usos, o gosto misturado e
esse jogo de lançar a imaginação
pelo penhasco, entre a névoa, ler só 
estórias de fantasmas, pressentir como
só os desastres ainda têm ouvido
para o que busca o outro lado da vida.
Saímos a meio da noite, e temos horas
com gravações de insectos, frases
recortadas, sobrepostas,
o relevo nocturno, o burilar e o eco
das chuvas depois de terem cedido
as traves do céu. Gosto de ver esbater-se
na água a minha carne de lua e de orvalho.
Passamos horas diante de uma chávena,
como aranhas, a estender alguma teia
a inventar presas. Entretanto,
o nosso nome já nem parece funcionar
ou responder seja a quem for. Na rádio,
do que pude perceber vem aí outra,
estão a matar aves todas as semanas,
às centenas de milhares. Se não for isso,
será outra coisa. Estamos habituados.
O fim fez de todos nós detectives 
implacáveis cronistas, habitantes da orla.


quarta-feira, abril 23, 2025


Para voltarmos vivos virgens a certos
lugares faz-nos falta outro rosto, um
desses familiares, suaves, que não insistem 
no quanto hoje somos ilegais, desolados,
rudes uns para os outros, 
mas nunca chega a haver desordem
mal nos olhamos, só por delírio 
nos parece que alguém cruza as linhas,
algum morto elogia uma jovem,
faz de um vestido amarelo um acontecimento,
e que inveja lhes temos, aos mortos.
Eles, que perderam toda a vergonha,
têm esse talento de quem raspou
até ao fundo a cova que lhes foi destinada,
regressando aos prazeres que nós 
por fraqueza desdenhamos. 
Só para os vermes os mortos
são todos iguais, diz Müller, e é evidente 
como a respiração de alguns provoca
nas nossas vidas um estranho efeito…
Deste, o sangue deixa-nos na boca
um gosto impossível, faz-nos acreditar
na aventura de um sincero luto,
aquele acusa-nos de tudo, pela ausência 
de vícios gozos perversões, transpiramos
e não se pode resistir à proximidade
a forma como rebenta e nos desfaz
em espuma cada pulsação deles,
esses corações que pararam de bater
deixaram de justificar-se, são mais audíveis 
cavalgando todos os ecos, têm 
uma avidez, aqueles gestos seguidos,
flagrantes, aquela alegria de estar diante
das belas coisas novas, aquela pressa
e como têm nomes sempre, os mais vivos
para aquilo que mais se esquiva, ah
essa gravidade que só conhecemos
de alguns seres quando já só lhes resta
uma frase, entre a poeira secular dos livros
um perfume indecente, o embalo e a sombra 
que liga as passagens mais desconexas,
eis a religião dos canibais, a que força 
e desenreda a memória, a música dessas
coincidências decisivas. Derrubam-nos
seduzem magoam, falam tão baixo e
não se perde nada, levam-nos a lugares
onde pode ainda exclamar-se
com terrível sinceridade: como a vida
é lenta, e a esperança violenta,
como são ainda perseguidos os encantos 
absurdos, ainda que por poucos,
os que nos engolem na sua névoa instintiva,
nos grandes bosques, sem horários,
nesses precipícios antigos, sem placas,
só vertigem. Lugares como esse jardim marinho
onde também eu deixei os meus remos.
Alguém sorri, prefere jogar às cartas,
inventar posses, apostar tudo e exibir
enfim o pescoço, mas com uma tal disposição 
de morrer, que mostra o sem sentido da coisa.
Homens esquecidos por certas mulheres
têm iluminações destas.


terça-feira, abril 22, 2025


É precisa alguma coragem
para fechar os olhos neste mundo,
e nós sempre apostámos contra nós
a favor da imaginação que nos corrói 
afiando algum trovão um fio entre coisas
de nada, reescrito mil vezes atravessando
quantos cadernos, num brilho
em que se cruzam os suaves solitários,
culpados, mal dormimos e tantos são já 
os sonhos a aguardar a sua vez.
Ficamos a ler quietos à luz dos fogos
de um mundo a desmoronar-se
com uma destas canções ordinárias
mas doces a tocar em fundo.
Não tens quase nada no quarto,
umas flores secas, as frequências de uns
poucos, o morse que resgatamos entre
as paredes finas deste século, neste profundo
asilo ouve-se a água, o cerco, as ervas
que crescem por aí, os livros na cómoda,
a ilha que recuperaste sozinho,
as frágeis espécies inventadas metidas
debaixo de astros que ninguém incomoda.
Depois de uns anos de estranheza,
torna-se um gosto sentir a ferrugem 
nos ossos, tremer de ideias que se colhe
como frutos negros que a cada hora
nos refazem a boca, o olhar, a perspectiva,
e ficamos nessa conversa fiada,
gozando a imoralidade própria 
dos que se sabem sórdidos mortais.


quinta-feira, março 27, 2025

Luís Oliveira (1940-2025). Uma revolução com sotaque estrangeiro



Tinha um irritante sorriso de bazófia e aquela distinta sobranceria de um patrão, falava do seu percurso e de si próprio regurgitando há décadas a mesma ladainha, empregando um tom de lenda, e essa narração acabou replicada, em parte pelo menos, nos necrológios, o que sinaliza como ele soube ler a tendência para reduzir tudo a uma caderneta de cromos, tendo desde muito cedo tratado de fomentar o panegírico em redor da editora e do seu papel, esse canto tão fantástico porque fúnebre, enquanto a casa se governava e o negócio se robustecia, e ele encarnava aquele género de heróis por conta de outrem que sempre povoaram o campo da edição. Assim, se lhe deve ser reconhecido o inegável mérito de ter criado um catálogo impecável, que defendia um tribunal às avessas, e a subsistência de um modo implacável da crítica integrando os contributos de anarquistas, comunistas libertários, situacionistas, erguendo uma galeria de autores em que o todo era manifestamente mais poderoso do que a mera soma das partes, por outro lado também se lhe pode apontar uma espécie de desencorajamento dos autores empenhados em fazer esta mesma crítica anticapitalista entre nós, sendo que nos últimos anos a própria revolução por cá parecia ter sotaque estrangeiro, como uma ideia que só poderia vingar se fosse importada. Podemos reconhecer a Luís Oliveira o ter criado as condições para que um conjunto de colaboradores e leitores – por vezes sonegados ou secundarizados por ele, sempre que achava necessário açambarcar os créditos e ressalvar que a Antígona era ele mesmo – pudessem compor lentamente e de forma muitíssimo coerente uma biblioteca com cerca de quatro centenas de títulos que se tornou um formidável desafio à civilização da alienação, por outro lado, ele mesmo desdenhou em tantas das suas intervenções os elementos mais radicais e emancipadores daquelas propostas, e enquanto as escolhas se mostravam bastante rendosas, não hesitava em recorrer aos tais “silogismos bolorentos” sempre que precisava de justificar a sua visão bastante conservadora e pragmática da empresa onde ele cumpria alegremente o papel do patrão. Mesmo se tantas vezes exibia uma confiança meio delirante, reclamando para si a aura e a distinção dos editores que dissipavam fortunas para dar expressão às vozes e às artes abomináveis, confundia duas esferas, duas formas de orgulho antagónicas, a do homem que triunfou enquanto a proliferação dos livros reduzia a sua esfera de irradiação, e a do tal editor que “escolheu os caminhos selvagens e abandonados pelos senhores do saber social dominante e que conseguiu aguentar-se no tempo” (Jorge Valadas). Acontece que esse triunfo significou em grande medida uma adaptação aos apetites do mercado, nomeadamente uma ânsia por oferecer o tipo de mercadoria que consubstancia uma forma ritual e gestual que passa por envergar o protesto e os sinais de repúdio pelo capitalismo, sempre enquanto símbolo, sem pôr seja o que for em causa, nem corroer as estruturas de coacção. Na verdade, este cinismo apenas as reforça, dando a possibilidade a alguns de se ludibriarem, continuando a consumir de forma impune, e escolhendo estrategicamente quando lhes convém assumir uma distância irónica. De resto, como demonstraram alguns autores, esta estrutura de repúdio serve de álibi ao próprio capitalismo, e não deixa de ser curioso que a Antígona seja um dos raros exemplos entre as nossas editoras que beneficiaram com a fusão realizada pelos grandes grupos editoriais, pois enquanto concentravam pequenas e médias editoras, convertendo-as em chancelas, e absorvendo os catálogos, para logo promoverem uma gestão centralizada, a editora de Luís Oliveira soube valer-se do definhamento da diversidade das apostas editoriais para reclamar a sua imunidade face àquele processo de extinção. Isto permitiu-lhe surgir isolada, com o seu editor a imaginar-se o nosso Crusoé, formulando essa consciência de um náufrago que resiste na sua ilha, entregando-se a acessos de megalomania em que reclamava para si o mérito das obras que lhe chegavam de fora e que ele traduzia e divulgava num contínuo sermão aos peixes, imaginando que sem os ter descoberto e publicado, os autores nem existiriam. No caso de Luís Oliveira, a distorção ainda é mais grotesca, uma vez que do inegável prestígio que alcançou o seu catálogo, um dos aspectos mais assinaláveis é a quase total ausência de verdadeiras descobertas, não editando propriamente os textos, mas limitando-se a fazer uma curadoria a partir das apostas feitas lá fora. Mesmo assim, gostava de se imaginar à frente de um quartel-mestre e adega de ratos, serpes e escaravelhos, uma forma de inversão folclórica com vista a exaltar aquele pequeno coral de espíritos indómitos ocupados a compendiar tantos dos mais ferozes discursos de crítica ao quadro de impostura e opressão a que nos vemos submetidos.
Enquanto o sector se ressentia com aquele efeito de esmagamento e abolição do ecossistema editorial, a Antígona reforçava a prosápia, e impunha a sua encenação moral, num zumbido que às tantas operava mais como “um ruído de fundo carnavalesco”. Com insuperável jactância, os materiais promocionais desta reclamavam títulos entretanto exaustos como o da mais insolente editora, refractária, sediciosa, subversiva, transgressora, uma força de resistência, uma conspiração permanente contra o mundo… E isto a um ponto tal em que o projecto de crítica parecia cair para segundo plano, enquanto ganhava relevo um programa de auto-celebração, que se estendia aos próprios leitores, os quais, enquanto se forneciam de textos incendiários que deveriam reduzir a cinzas o quadro miserando da mercantilização e o enredo espectacular, ali participavam num cerimonial em que a aquisição dos livros passava por ir buscar a hóstia maldita, numa liturgia que invertia os signos apenas para reproduzir uma outra ficção beatífica. E aquele discurso absurdamente enfatuado e que se fazia passar por insolência, não significava outra coisa senão uma reconvenção do fetichismo da mercadoria. Leia-se a título de exemplo uma dessas proclamações destacadas em letras garrafais nos panfletos da editora: “A Antígona não aspira conquistar um lugar, modesto que fosse, no mundo das artes e das letras, nem na história assaz respeitável da edição. Se por infelicidade um panteão lhe fosse oferecessem, o único que lhe conviria seria o dos grandes cataclismos, ao lado dos terramotos ou do dia da peste. Da peste; sem dúvida!” Assim, se todos beneficiamos do trabalho de quase meio século de uma editora que se construiu como uma promessa de desobediência, e em que cada livro devia renovar um apelo ameaçador, se não podemos deixar de elogiar as suas edições esmeradas, com óptimas traduções, um excelente trabalho de revisão, e, nos últimos anos, impondo-se ainda pelo cuidado gráfico e com a paginação dos livros, produzindo objectos muitíssimo estimáveis, a própria editora deveria ter dado o exemplo, abrindo a possibilidade a um reflexo crítico do seu trabalho, a que lhe fossem apontados os excessos numa forma de comunicar que passa por gabarolice, no que, de resto, segue a postura do seu editor, que fazia gala dos seus opíparos consumos, alguém que pela sua intervenção emancipadora requeria os luxos de uma aristocracia subversora, mas se nuns momentos se dizia comprometido com “a subversão das condições mentais presentes”, e empenhado em contribuir com as suas edições para a crítica da sociedade mercantil, não hesitou em recorrer aos tribunais quando outro editor se antecipou à suspensão dos direitos de autor sobre a obra de George Orwell, isto depois de confessadamente ele mesmo ter conseguido alguns dos maiores êxitos de vendas da Antígona com sucessivas edições pirata, e que, nos últimos anos, levou ao paroxismo a sua postura de vigarista e troca-tintas indo ao ponto de desautorizar os autores que publicava, abusando de máximas dissolventes e dando a entender que não havia de facto alternativa ao tal regime mercantilista. Assim, mesmo se fazia a fita daquele que veio fazer entre nós qualquer coisa que absolutamente tinha de ser feita, dita, pensada, para que a conspiração se mantivesse enquanto uma operação permanente, uma resistência às ideias feitas, à acomodação, aos conversadorismos, às tantas, a própria persistência, e aquela história de meio século, oferecia-nos uma leitura dolorosa sobre o fiasco daquelas propostas, de como em cima delas foi possível construir um esquema bastante lucrativo, mas não se gerou qualquer contágio ou motim. De resto, se nunca se eximiu de expressar uma visão deprimente do nosso próprio contexto cultural, se não perdia a oportunidade de rebaixar os escritores portugueses, repetindo que era mais difícil um autor entrar no catálogo da Antígona do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha, quando o confrontávamos com essa tão severa apreciação e lhe perguntávamos se já tinha lido este ou aquele título, autor, a resposta era que não, invariavelmente lá reconhecia que não fazia puto de ideia. Portanto, o seu magistério passava por uma obnóxia indiferença e desdém, e se nunca se mostrou muito empenhado em instigar e dar força a um ímpeto de crítica selvagem entre nós, depois mostrou-se muito competente na hora de se servir do estrangeiro como uma assombração desoladora, uma barreira supressora.


segunda-feira, março 17, 2025


Temos de rezar, sim, não a deuses
mas uns aos outros, até que nos consuma
a chama crua que coze cá dentro
e logo que temperaturas febres se alcança 
só pela troca de algo tão breve
como um olhar,
Desembarcamos, vimos,
rindo brilhando
com movimentos bruscos, luzes
desavindas, cheiros, numes, 
desse radiante cansaço que se parece
com a embriaguez 
o corpo é uma memória comum, mapa
onde abrimos a noite, as senhas
os idiomas corroídos
de tanto nos falarmos a sós 
com o escuro desatado, essa canção
que nos deixou água nos ouvidos,
e ainda o embalo duro que toma conta
dos corredores, a impressão 
dos que tremem diante do impossível 
Viemos pela vida, mas não da que se vê
por aí, tão vista, já gasta
antes a outra, forte e de antiga data, 
mesmo se estreita cheia
de vincos, remendos E que incerto
se mostra esse rosto
um rosto tão escuro que não há luz
para abri-lo de uma vez
mesmo para nós, é um susto
a cada expressão, e ao rir-se
mal lhe sobrevivemos
faz meses que cobrimos os espelhos
e ainda falta tudo o que nos vão obrigar 
a fazer. Eu, eu, onde me levou isso
tão riscados os papéis, e que promessas
nos fizemos 
: um dia destes torno-me discreto
seis meses seis anos mais uns seis
segundos da minha carne à tua
acabo eu mesmo com a minha raça
nem deixo que se oiça outro passo
neste continente absurdo
mas não antes que uma coisa
fique clara, um nó por cima de outro
como a vida exige ser cobrada à morte


sexta-feira, fevereiro 14, 2025


As paisagens estão frias, 
alguém impôs um limite à música,
respiração que nos iluminou noutros dias.
Houve ordens nesse sentido,
e é para o teu próprio bem.
Há seres que se vêem empurrados
para o passado, trancados na memória 
repetindo os mesmos lugares
onde encontraram aquele resumo
falso do que a vida poderia ser.
Quando a presença dos desconhecidos 
deixa de surtir em nós qualquer efeito,
o mundo já não nos prende.
Bastam então os elementos para
nos sentirmos a apodrecer, calma,
docemente. Os nomes
começam a despegar tal
como o papel de parede.
Não ousarias dizer mais nada 
de modo a não perder o fio.
Tínhamos de sair daqui,
mesmo não havendo outra coisa
é melhor estar de passagem,
não recear pôr termo às coisas.
Que última hora terá o sol
neste lugar para nos vir dizer
que o corpo é uma oração
e que ninguém poderá saber
desta ferrugem que nos consome
a carne, da areia que encontramos 
nos bolsos, do deserto que levamos
cá dentro.


segunda-feira, dezembro 30, 2024


A partir daqui não conta; é o cansaço 
acumulado e alguns reflexos que lhe fogem
e se põem a abusar da imaginação.
Já deves ter ouvido essas histórias,
coisas atrozes, delicadezas absurdas,
os ratos que somos em cima da carcaça 
dos antigos deuses, e disso
fica este rumor como vizinhança.
Que importa? Lemos versos como nas trincheiras 
se masca tabaco, para ocupar a boca,
roendo o vazio, quando ninguém sabe
que fazer com toda esta ausência.
O outro é que repetia: “Ninguém ampara
o cavaleiro do mundo delirante”...
Pois ocupamos as escadas, entre andares
sem subir nem descer, há meses
colhendo folhas, insectos, a fazer chá 
se chover, sem despirmos a velha
gabardine. Estamos tão juntos
e não é que sejamos iguais, talvez
nos falte a paciência e o orgulho
que faz inimigos.
Foram bons tempos esses,
prefiro recordar-nos como éramos então,
quando acreditávamos na guerra, 
na importância de tomar de assalto
uma colina, uma ponte... Agora
aqueles mesmos soldados reúnem-se
e já não sabem o que viram, que mundo
era aquele, e de roda de um piano
compõem uma música que nem é
para se ouvir, só para estar ali.
A estas horas detestáveis do dia
é tão difícil estar vivo,
os fantasmas mantêm-se bêbedos,
apesar de a noite não passar já
de uma miragem, uma lenda.
Os detectives dormem pouco,
maltratados pelos astros
reviram-se e dão por pistas ou migalhas na cama,
atravessam a cena de algum crime,
fazem-nos mil vezes as mesmas perguntas.
A culpa é nossa, diz alguém, foi isto
o que escolhemos, como grita o velho:
“se não amam o caos, não comem…
Só quem respira o alento da fera
tem o direito de descrevê-la,
erguendo o pó, misturando pétalas e escamas”.
Eu já gostei da vida. Mas agora,
a cada dia, pergunto-me: o que é isto?


quinta-feira, dezembro 19, 2024


O que é que o som de pássaros tem a ver
com estes lugares de culto, e o hábito 
de substituir a perversidade natural
pela ambição de vulgares imitadores
estes que usam tinta e fixam disparates,
pintores, filósofos, fotógrafos, estudantes
de moda, os imbecis do costume, todos
os que perderam o sexo e a fome, e costuram
vezes sem conta as suas fantasias fingindo 
uma intensidade criminosa sem levarem
nada até ao fim? Só que depois é o monstro
quem ouve primeiro esses sons, a luta
pela vida das coisas que não podem estar
no mundo. Já tirámos tudo o que foi possível 
de sacos de papel, o horror das migalhas
e a disputa entre sombras, mas se queremos 
que vejam algo mais, não seria necessário
torturar cada um deles? Repara como
mastigam cada nome e lhe esquecem o rosto,
os detalhes assombrosos, os traços frios,
as hastes, o nariz quebrado, o modo de
pedir com os olhos. Passam-lhe batom
e o sorriso ainda fica um caos, porque é
ainda pior do que se diz, este jogo de azar,
a arma que vai passando de mão em mão,
e mais tarde, ah, mais tarde esperam eles,
cheirando o rastro que deixaste, fazendo
aquelas caras, tirando notas, julgando
que se acabou, e que estão safos, só que
depois ainda é a vez dos nossos ecos.


quarta-feira, dezembro 18, 2024


rompe e rasga, põe aí o recorte
e o acidente natural, tudo foge,
se esquiva a si mesmo, tudo quer
lançar-se sobre outra coisa,
a fantasia das coisas é o diverso,
a sombra misturada, a vertigem
sexual, cada quarto íntimo é 
uma tremenda confusão, ficam
impregnados os sinais de uma
metamorfose incompleta, dolorosa
mesmo a consciência é apenas
a passagem, e cada um nasce já 
com a sua lâmina, o tempo fere-se
entre nós, e é depois de um corpo,
da necessidade absoluta, quando
desse gosto de que antes não 
sabias como te saciar, é então 
que deixas esse gesto a meio e
sentes o eterno cansaço de certos
meses, puxas os lençóis sobre
a cabeça, porque no fim nada nos
satisfaz, a poesia é a interrupção


terça-feira, dezembro 17, 2024


Sem fortuna de espécie alguma, com o nome
por fazer enquanto outro feito já contra ti
surge amiúde na boca dos demais
como pérola negra desse baixo tom de intriga
e da amargura de tanto morderem no vazio
mas se, da sua ameaça, resta um gosto acre,
quanto à força tomam-na por devaneio
pois tudo o que vive lhes causa tonturas
tudo o que importune a ânsia de juros
que os leva a rebaixar a beleza, irrita-os,
como cada pedra refazendo o seu voo
ao reanimar os estilhaços e a corrente
entre as ilhas obsedantes, a favor
da irrupção do quotidiano no mundo divino,
seus lugares e vozes, tudo isso os assusta.
Num convívio do real com o irreal,
a cada manhã o poeta desperta diante
da sua insuportável metamorfose,
tão doce para nós, vem e ofende o mundo
devasta-lhe o pudor, as convenções, mas
e estes comedores de lótus, que fazem?
Apenas se repetem, só criam espuma
em vez de ondas, e em vez de igualarem
aquele transtorno exaltante, vulgarizam-na 
para que se pareça um pouco com eles.
Nunca este ou aquele homem puderam
apropriar-se dela, dessa luta para tirar
a forma do caos, imprimindo de novo
o seu escândalo. Mas que fazem os imbecis?
Falam tanto dela, querendo apenas dizer
uma e outra vez: eles mesmos, a posse,
esse vazio dos que respondem sempre
à chamada, sem nada de perturbador que dizer.