Nulidade impante que é, António Cândido Franco dá sempre a impressão de que escreve como quem falasse de boca cheia, salpicando-nos, e baralhando tudo, ele empanzina e estrebucha, a corrigir um tropeção noutro, com um talento inegável para fazer de cada semente de bronze outra pevide, tão habituado às ensaboadelas académicas, e a pôr aquele ar grávido de quem sobe à tona para cuspir um jacto depois de um amargo estudo nas profundezas. Basta o arranque do texto em que, no mais recente número do jornal A Batalha, quer vir para um ajuste de contas com a edição de O Anticrítico (2023), onde levou uns bufardos, para esbarrarmos naquelas imprecisões que, mais do que desleixo, procuram dar saída a uma prosa que se quer cozinhada na evidente sopa do revólver, e começa por anotar que fiz uma formação "típica" de quem veio "depois da revolução e do seu Termidor" (mas e ele o que sabe ele da formação que fiz ou deixei de fazer?), e adianta que a Língua Morta, sim, que se vai mostrando “com gosto e algum acerto”, e depois de assinalar um conjunto de frechadas bem apontadas no meu volume de crítica, vem esbarrar num “louvor sincero” a Agustina, e trata logo de provar que não leu o artigo, pois finge, distorce, aldraba, afirmando que o elogio que ali é feito enaltece acima de tudo “o talento verbal da autora”. O texto está disponível online e qualquer um poderá lê-lo e constatar que António Cândido Franco não o fez. E esta começa por ser uma distância enorme que me separa de quase todos os outros supostos críticos literários. “Pois é, eu leio. Tenho contra mim esta ridícula maneira de proceder.” E nem vos faço o gosto de dar o seu a quem de direito, pois tomo muito assim um balanço na base do furto, embora preferisse que me pudessem apreciar a fazê-lo com maior violência. Mas não vamos aqui perder muito tempo com subtilezas ou correcções, sejam elas de pormenor ou dessas que desmascaram um bigorrilhas no acto, isto porque seria tomar como séria a intenção, fingir que se tratou de desmazelo, quando o que tem sido mais constante é esta de virem para polémicas umas pobres cabecinhas transtornadas, a lançar calhaus a algum espantalho, e a coroar-se de estandartes como num torneio de cavaleiros, enquanto me vão pintando um retrato que não é outra coisa senão quem lhes apetecia que eu fosse. Para isso, torna-se essencial desnatar-me, desconsiderar tudo, aproveitar-se da caricatura que fazem os que vivem na pataqueira, sempre no esmolar da intriga, pois é assim que se fazem os ajustes de contas entre nós, tendo por base só aquela meã consciência atafulhada de vegetações das que ficam a criar bicho no miolo de tomos nunca lidos. E isto vai servindo a uns que também querem fazer asua reputação de monstros por escrito. Não vamos agora queixar-nos muito disto, sendo coisa de somenos, se tanto mais nos temos queixado de que hoje andamos tão mal servidos de duelos. Mas, com Agustina e os que mais se seguem, ACF serve-se de um truque bastante óbvio, que é dirigir-se a quem não lê, e se fica pela boataria, pegando nas figuras que parecem mais fáceis de despetalar sem uma apreciação mais funda, e isto para seduzir aquela flor da imbecilidade que nem raízes tem, mas se alimenta da peçonha desdenhosa que anda no ar, completamente desinteressada de alguma justiça que se possa fazer aos poetas ou aos raros que, em vida destes, os trataram como a príncipes, estes poetas que estes outros depois não se cansam de cercar com esses pasmos laboriosos boquiabertos. E se o trabalho do Manuel Hermínio Monteiro nunca impressionou ACF, que prefere tomá-lo como suspeito porque ficou comendador aos 40, hoje também se pode notar como foi convenientemente esquecido, quase apagado, ou vilipendiado por qualquer um desses biltres que, em vida daqueles poetas, não estamos bem a ver o que fizeram para lhes salgar os caprichos (e a Cesariny convinha ter dado a tempo um pouco do que era de César e até de Deus antes que se tornasse mais outro engavetado, outro falecido desses tão rendosos para enchoriçar na cátedra ou vir biografá-lo), mas bem vemos agora como as suas obras são transformadas por biltres de toda a laia numa espécie de cantilenas entoadas nos lugares mais infectos. E, neste ponto, talvez valha a pena notar como ACF, que começou esta recensão explicando que este tão dissimulado charavaneco (eu, EU), depois da tal formação tão típica de qualquer filho de oficial, qualquer rebento de burocrata, logo deixou claro que andava doido por poleiro, comendas, este que, no final de contas, está é apostado em furar o esquema aos autênticos salteadores, quando, no fundo, quer é repor a hierarquia. Pois. E diz que vim pela literatura, fui despachado, estão a ver, estilo agente-duplo sacânico, a vestir a pele do pelintra, infiltrar-me na resistência e dar os códigos do comando. Estava eu nisto, compenetrado e a ter grande sucesso, mas este Chewbacca topou-me. Diz que fui fazendo poemas, e ele contou pelos mil dedos centopeicos de leitor-toupeira, contou e diz que entretanto já vão em “muitos”. Já eu, e quanto aos dele, não sei se escreveu muitos ou poucos... tendo, contudo, a inclinar-me para esta última, pois se não chegou a escrever nenhum de jeito, e eu li-os, todos os que me deu a ler tão desnecessariamente, tendo-os reunido depois de uns vinte e tantos anos de desgastes (por fim, ao que parece, deixou-se daquilo) com o selo da Quasi, tomando Jorge Reis-Sá por seu editor, e creio até que estimado. Portanto, e quanto aos juízos de ACF em relação aos nossos editores, creio bem que o assunto está arrumado. Mas parte daí para, logo a seguir, querer lavar a honra do editor recentemente desaparecido da Antígona, Luís Oliveira, e, por esta altura, a única recomendação que lhe posso fazer é que o melhor será reservar umas termas por uma larga temporada, esfregá-lo todo, ungi-lo bem, coisa em que, de resto, ACF tem já uma larga prática. Pois se é um desses que, para nos distrair da sua indigência mental, se especializou em ir escavar nos jardins de lápides a matéria para fazer a broa, pondo-se até a imitá-los com infantil gravidade... ACF está sempre na ficha e entre os membros dessas sociedades de amigos de tal e tal ilustre falecido, sendo um dos nossos mais destacados biógrafos-e-santeiros, amadores de relíquias, um dos mais constantes entre o pulguedo migrador atraído pela putrefacção da glória, anda sempre nessas operações que, através da mais vulgar alquimia fúnebre, atinge as obras de um modo em nada diferente do germinar da bicharia na carne. Tem aquela coisa de escriba-verminoso que se senta à mesa e produz bibliografias passivas como quem julgasse assim engordar o seu próprio destino. E é com estes escritos de um sacristão leproso que, no fundo, não percebe patavina, mas persiste entre o nosso círculo de basbaques como uma das nossas mais esfaimadas marabuntas da interpretação. E é, assim, a ele, como a uns poucos mais, (António Cabrita, António Carlos Cortez… são os que logo ocorrem pondo o dedo no meu índice onomástico), que dá vontade de fazer aquela pergunta colocada certa vez por Jodorowski: “Para quê todo este circo? (…) Passar do eterno ao efémero por uma sede de espelho?”
Ora, no nosso meio literário, como já fomos notando em tantas ocasiões, à semelhança do que ocorre em qualquer camorra, também temos os fixers, esses agentes de facilitação, mas que, em lugar de tarefas meramente ingratas ou indecentes, em vez de uma certa desenvoltura ou habilidade para os actos sujos, o que temos neles são pequenos sabujos, tipos que se ocupam de alimentar as torpezas, os equívocos e confusões de toda a ordem, fazer a propaganda daqueles que os acoitam, enaltecer os senhorios, branquear manigâncias, tudo em troca de uma porção maior da ração, e assim põem a cassete de outros quantos, para dar a sensação de estão amatilhados, e ladram para dar a ideia de que a propriedade se mantém inviolada, zelando assim pela integridade dos casais e quintas. Não há, por isso, um só desses sacripantas que organizam o regime de tutela no campo cultural que não se faça cercar destes aleivosos nairecos. Corifeu desse centro piolhoso, catequista ao serviço da integração dos saberes como matéria esotérica, sempre a baralhar cadáveres, sempre a capitanear as hordas de canibais homenageantes, sempre numas fanfarronadas confusas e atabalhoadas, essa sensação de patranha a fingir erudição, a remexer baldadamente nos volumes de oitocentos, a acrescentar despropositadamente informações demasiado circunstanciais, e a expor-nos as varizes da literatice com orgulho, para provar as horas que passa de pé a fazer a segurança no museu da coisa… Este é o nosso António Cândido Franco. É o tipo de pregador que mal se debruça sobre um texto, põe-se a carburar, e logo o esturro cheira a incenso, desata numas moralidades, sempre com uns fervores, numas prédicas, mas, depois, não consegue impedir-se de cuspir uma mosca ou outra. É claramente um resto desses tantas vezes requentados de um Teófilo Braga, esse de cujos livros Camilo disse serem uma balbúrdia, com os seus “retraços de ciência apanhados a dente, mal mascados, um cérebro atrapalhado como armazém de adeleiro, golfos de bolo não esmoído… coisas apocalípticas, muito desatadas, e tudo em prosa deslavada, derreada, exarciada de galicismos, caótica, apontoada de enxacoco de retalhinhos apanhados à toa numa canastra de apontamentos baralhados e atirados para o prelo”. Isto traça-lhe perfeitamente o tom, o estilo e, sobretudo, a estratégia e alcance.
E é com tudo isto, e com aquele hemorroidal do cérebro que, numas horas lhe dá para se mostrar muito cioso das suas baboseiras retocadas, sempre a coser à lapela algum emblema de mais uma seita frustre, que depois de reconhecer que se o “cartapácio” de que me servi para declarar guerra não tanto a meio mundo, mas sobretudo a essa província carunchosa que é o nosso meio literário, onde ACF tem prosperado com um franchise especializado em fumeiro, se este tem aspectos meritórios e simpáticos (e vamos ver o que nos diz depois de mais esta atençãozinha que lhe faço), acaba por assinalar que, o que se engole lendo os textos de forma isolada e ocasional, já não se atura por grosso, revelando “inanidades insuperáveis”. Quais sejam elas ficamos sem saber. O que já se sabe, e já nem me lembro quem foi que o disse primeiro, é que o ressentimento é um veneno desses que um tipo toma na esperança de que outro cabrão morra. E ACF nunca se refere ao texto central no volume em que lhe são desferidas umas boas lostras. Dispensando-se de qualquer fundamentação, e apenas citando a despropósito uma que outra frase, que tudo ali redunda num “desbaratar de palavras num frenesim sem alvo nem interesse”… É claro que se falhou o alvo, como comprova o facto de ele ser um dos mais evidentes alvos, não tendo demonstrado a menor vontade de relembrar os leitores dos motivos porque foi visado. Então, propõe antes um juízo redondo, rotundo, uma espécie de maledictio. E uma vez que este me enobrece e é motivo de orgulho, interessa-me destacá-lo, envergá-lo, e, se pudesse, até fazia uma cinta para envolver o “cartapácio”… “É por isso que estas 700 páginas são, assim em conjunto, um desperdício e um logro. Não passam de agitação – excitação vã” (…) “Nada é tão verdade neste livro, como a sua capa, onde vemos um garotinho a atirar bolas de neve.” A verdade é que mesmo esta capa não foi escolha minha. A minha preferência foi sempre para aquela que ilustra este artigo, e o editor até me concedeu o favor de mandar fazer uns 50 exemplares com a capa que eu preferia. Depois ACF faz questão de sublinhar como tenho escrito nos últimos meses para a revista Ler, sendo que ali fiz um elogio sem as menores reservas à poesia de Vasco Graça Moura. Claro que para ACF é igual ao litro estar a falar do poeta ou do articulista que atirava a matar na oposição parlamentar, e do PS!, veja-se só. Além disso, tão pouco recomendável bardo era dos tais que chegou a ocupar um lugar no parlamente europeu, sendo eleito nas listas do PSD. Portanto, mais valia arrancá-lo das antologias e meter no lugar dele ACF ou algum dos seus compadres. Seja como for, aí está!, mais outra prova de que ando metido com o poder, e o mais certo, garante ACF, é que em breve me possam ver a assinar um “louvor sincero” ao presidente da Academia das Ciências de Lisboa. Não sei quem seja tal personagem, mas tem já um pouco da minha estima e solidariedade se foi eleito como a suprema megera do nosso sistema por este nosso grande heresiarca. Curiosamente, e como já acontecera antes, quando me foi dirigido um outro ataque na forma de colagens por parte de outro dos nossos zelotas, talvez para não conspurcar os meios oficiais onde estes anarcalhotes de fim-de-semana também prestam os seus serviços, escolhem sempre as folhecas apocalípticas, o que me faz sempre sentir muito honrado, pois acabo ao lado de carniceiros e gente realmente do piorio, e assim parece que já fiz o suficiente ao escolher ir pelas letras, e também eu tenho a honra de ser um homem odiado. Talvez a minha obra maior tenha sido mesmo a de condenar estes jagunços, que se tomam por meus figadais inimigos, a unirem-se e irem ao ponto de fingir uns pelos outros algum amor e até um propósito comum, elegendo como acção urgente pôr cobro a este flagelo que tenho representado para as reputações literárias. Fico comovido, é claro, e espero mesmo pela continuação, ao lado dos abusos das grandes corporações e do patronato, da desmatação das florestas, entre crimes ambientais, massacres de populações indígenas, guerras genocidas, fico comovido de ver como estas figuraças de alto coturno escolhem estas folhas para arragaçar as mangas de alpaca, e me enfiarem nos seus “gorjeios canoros de armar ao pingarelho militante” (VST). Agrada-me ser colocado ao lado dos facínoras, e isso prestigia-me quando tudo o que fiz foi mostrar que há um caminho para a crítica, uma forma de desagradar profundamente a estes que, assim, e no intervalo dos colóquios e das caldeiradas com patrocínio oficial, sempre com o pretexto de roer ossos marginais, nos explicam porque vamos dando com qualquer uma das nossas mitologias sempre tão desprestigiadas, ratadas por este género de militantes.
segunda-feira, dezembro 08, 2025
O Anticrítico leva porrada da grossa nas páginas do jornal A Batalha
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perspectivas
quarta-feira, outubro 22, 2025
O tempo viria a ser preterido, uma
distância para o consumo de si e dos
outros, sem a menor ânsia de distinção
acorda-se sem boca, os nomes
pertencem já a uma outra espécie
vidas que abandonámos ficando na cama
como se toda a resistência fosse
a de um mundo que deixámos de julgar
a lenta influência da galáxia omissa
desse pingo feroz desligando-nos da carne
e o escuro esse talento que os anos
reúnem a nosso favor, a trégua de se
ir sufocando as memórias, trocar
o passado por alguma canção
ter um apetite como se tem um vago
dom musical, o ouvido, a atenção submersa
mãos enormes alcançando
as notas em toda extensão que nos pediam
outros corpos, como uma escrita
em que cada breve e humilde linha
prolonga um tom que de outro modo
teria desaparecido.
A displicência torna-se assim uma paixão,
atravessando a época fiel a uma antiguidade
inventada, numa prece vegetal
em que raízes e talos brotam
para acomodar-nos, um junco sustendo
um telhado, um caule tenro aquela estátua
sentada que ampara a nossa dissolução,
estas mesas onde dormimos à tona
de que horas, as lentas passagens
sem rumo, e se tudo é um resto
duvidamos inteiramente das evidências
e contados os dias conta-os outra vez
assim faremos a morte desistir de nós
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modus operandi
quinta-feira, outubro 02, 2025
Se os começos valem para alguma coisa
se antes buscávamos o toque de um sino
arrancado como um fruto excessivo
à torre da igreja por algum demónio,
se isto mexia connosco, nos atiçava,
estes daqui só querem documentos.
Nem a própria língua falam, mas anseiam
possuir uma linguagem desconhecida.
Metem todas as vezes sobre a balança
um coração e outro e nenhum deles
pesa mais que um anel, uma arma,
a cabeça de um ganso. Em vez de
Chopin e vinho, só essa música reles,
nunca seguiram qualquer desses anjos frescos
desembarcados em Marselha ou num porto
que só resiste no embalo das marés
de Apollinaire, nunca os chuparam e
espancaram para não terem de pagar,
saindo a correr daquele jardim marinho
onde deixámos os remos, o velame, a lua
devorada lentamente por uma aranha.
As nossas mães foram noites seguidas,
e trabalhámos à custa de que álcoois
para nos livrarmos daquele hálito tépido
que a nossa geração exalava contra
os grandes gritos, assim ficámos para o fim
longe dos lábios à flor da onda (...)
mal vestidos à espera do amanhecer
jogando com as pedras extraídas
do nosso fígado, refazendo a mesa
a rua, folheando séculos, bem instruídos
entre papoilas e postes de eletricidade
restos de animais na berma das estradas
os pássaros que por aqueles dias soavam
mais como chibos. Mas qual seria afinal
a pior coisa que poderiam fazer-nos?
A prisão não é tão má como se diz.
Tem má fama, mas alimentam-te,
não pagas renda, não tens ralações,
e, se te calhar um bom grupo, ainda
te divertes, ouves o outro lado da história,
os motivos, as paixões mais delirantes,
e logo te livras com gosto de quem eras
quando lá entraste. Vais provar e uivar
com um frito de flores embebido
em mel louro, e vais até sentir
por vezes entre as células esse grito
da floresta que foge ao longe
como um exército antigo.
Isto cá fora é uma merda. Trancado
na tua memória perderás menos coisas
do que forçado a assistir por aí à extinção.
E se não levares grandes remorsos,
se o que te meteu lá foi um crime honesto,
até isso hão-de levar em consideração.
Não despertarás com o passo de ninguém
que chegue, nem terás grande temor
e não te dirá nada esse soluço
que lhes serve como última confissão.
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modus operandi
domingo, setembro 21, 2025
Desta linha em diante evite, por delicadeza,
o contacto visual, ou movimentos bruscos.
Fazemos o melhor, mas os cortes, bem vê
os problemas que vão causando.
Perdoe este odor, nem a lixívia ajuda,
não se consegue muito melhor.
A água não sabe mal,
se puder abstrair-se do copo dessa cor,
eles culpam a rotação infernal aqui,
estas repetições, às vezes parece
que ajuda a dormir, e a verdade
é que damos uns pelos outros
sorrindo no fundo de cada sonho…
"Merda", "merda" repete aquele e às vezes
com os dedos cheios dela enche
de notas de música as paredes.
Levámos anos antes que alguém
que as pudesse ler se desse conta
do encanto absurdo dessas composições.
Esse pinta a fruta toda de uns quantos séculos
e atrai todas estas moscas, mas se não
lhe damos os óleos ainda é pior, a gritaria
lançava os outros num motim. Como vê,
essa janela já não serve, e até
deixou de funcionar depois de o último
se ter lançado lá abaixo, as grades
deixam-nos a todos bastante tristes
mas o mais estranho foi como parecem
ter raspado a montanha e o fizeram
em tão poucos dias. Era toda a altura
que tínhamos. É difícil dizer o que é pior.
Andamos de eternidade em eternidade,
e depois isto. Mal se consegue ler cá dentro.
Os eléctrodos fazem tanta comichão...
Mas a respiração do espelho deixa-nos ver
o pó dançar, e a imaginação de alguns
não tem fundo, vivem numa perpétua vigília.
Naquilo que eles sabem, estão sozinhos.
Os versos são um morse, uma luz
intermitente. Canções arrastando os pés,
essas senhas trocadas entre condenados.
Afinal, não foi sempre essa a pergunta
que nos fizemos: se teríamos a coragem
de morrer disto, destas visões? Mas hoje
já nem se dá pela diferença, lá fora
consegue ser mais duro. E que diferença faz
em que ano estamos agora que ao tempo
se lhe acabou o fôlego, e o certo é que
vai demorar ainda mais algum até nos darem
razão? Por sorte a loucura distrai-nos.
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modus operandi
quinta-feira, setembro 18, 2025
és o últimoda tua geração a apagar o sole a transformar-se em póEnrique Lihn
Passaram horas, o chá ficou amargo
mas continua quente. Queima os lábios,
e é impossível bebê-lo por agora.
Nas gavetas acumula-se a poeira
de outros mundos, as línguas parecem
misturar-se, é difícil terminar a frase
que se começou. A voz sabe-nos mal.
Tudo vem sempre da noite,
ouvem-se comboios impossíveis
que passam apenas para provocar o seu abalo
rasando as janelas a pele os dedos
entre as duas e as quatro da madrugada.
Que estranhos somos para nós próprios
e estes corpos mal servem de medida.
As sombras de outros tempos cruzam-se
aqui, vês alguma memória encurralada pela luz
como os anúncios que mancham as noites,
recortando no tecto vultos delicados.
As horas parecem confusas, tens a manhã
ali, a vantagem da janela e de alguns metros
de altura, esses pequenos meridianos,
usas a meia dela para filtrar o café,
já saíste, voltaste com o jornal, ou o livro
de ontem, revês os cantos dobrados,
quem leu isto, sublinhou aquilo,
é difícil ter a certeza, quebras um ramo,
espalhas esses amuletos do fim.
Por momentos parece que o absoluto
não terá mais como negar-se,
se a terra debaixo deste alento me desse
um impulso, mas ponho-me a mexer
nuns papéis, cheiro esses reflexos ósseos
que a lua nos deixou pelo quarto,
oiço o que dissemos a meio da noite
ao desistirmos do sono, os dois feitos
monstros de murmuração. As luzes indirectas,
paisagens reabsorvidas pelo som,
jardins de raízes gregas onde enterrámos
as mãos a orelha esquerda restos
de amantes, caminhos afogados.
O rádio toca, acordas-me eu
puxo-te o lençol a luz, e com a manhã
um pouco de cólera, alguma lepra e café
saímos com a roupa húmida
como é próprio dos afogados,
esta dificuldade em levantar o rosto
ver algo mais do que aquilo que
já foi dito. Sento-me e procuro uma nota,
flor que fira o ar, e parto pedra, lapido,
aspiro para dentro dos pulmões o pó
do mármore, mas a última frase surge
arrasada pelo vento, o som do mundo
parece ter ficado debaixo de água.
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modus operandi
quarta-feira, setembro 10, 2025
Há esboços disto em tantos cadernos,
às vezes chama, voltas, arrancas as ervas
de entre as notas, para não se perder
sempre foste juntando fragmentos
mas de tantos meses de anos inteiros
por vezes nem o cadáver de uma lágrima
talvez um nome já frio se salvasse,
algum reflexo só e perdido,
sombras de ar, e de todo o tumulto
resta o ventre rasgado
as sementes no interior como um fruto
no fragrante bosque que mirrou distante
até caber numa legenda, subtil e poderosa
aí colhes a estranheza e o gume
de uns quantos detalhes, flores invertidas
o recorte indecente do que faz fronteira
com essas noites que tanto querias repetir,
e o vento vem volta de lá aleijado, fingindo
que lê as frases escritas sobre a matéria viva,
com a seiva cicatrizando-lhes o fulgor,
rostos turvos nos poços rodam
no sentido contrário à vida, o olhar
segue tão longe, tocando nos restos
da marca da inteligência humana.
Temos de deslocar interiormente esse
antigo órgão, hoje praticamente inútil,
para vir respirar à superfície tentando
cumprir algum ciclo misterioso.
A espécie perdeu-se, os ritmos interiores
ficaram por aí ilegíveis, sinais rudes
trabalhados em pedra ou osso, mas
é para eles que olhamos desejando
que alguém tenha podido dizer
algo directo simples e duro
uma maldição que engula tudo isto.
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modus operandi
terça-feira, setembro 09, 2025
No sono, os territórios dão-se a nós
entre estações de vária e exuberante
expressão, ciclos relevos um tumulto vivo
lembrando um organismo antigo entregue
a um cultivo detalhado de tudo quanto
o envolveu e colheu dele um respiro
a sua ordem de propagação. Sou chegado
a isto tardiamente e começo a ouvir-me
nas relações distantes, só me conheço
como um estranho esparso anterior
recuperando movimentos frases o pó
de mãos cuja madurez me impregna
os gestos e se me lembram que não
devo comparar nem perder o fio
para uma forma de terror, e que a tarefa
da beleza é quebrar-nos, fazer de nós
homens, ou melhor, formas desistidas,
já o divino escreve-se seguidamente
numa perseguição radiosa firme
arrastando tudo, comovendo, arrancando
de cada limite as forças, assim só resta
essa pergunta: terei ardor que me faça
tão doloroso e paciente, tão revisto
estrangulado por essa inquietação
com que decora a presa atento a cada
músculo o menor acento na pele, o silêncio
tenso vigilante a permanência desse susto
que lhe salva a vida, e muito depois
o sangue em grito que floresce
quando trocam explicações nesse laço
sombrio entre a vida e a morte. Por isso,
o verso nasce para um sustento absurdo,
esgotando-se numa agonia tão doce
que nos dilacera pelo tempo fora. Não se mata,
não se escreve um verso impunemente.
Escutamos a música desse encadeamento feroz
os sons desse que ilustra um maior arrebatamento
porque mais estudado, a crueldade em floração
sintetizando intimamente outro acorde
de ordem estelar, um oxigénio
que se inverte no sangue, transforma
subtilmente as matérias naturais, colhe
frutos, fere o rosto nos arbustos, levanta
a escama e o reflexo, aquele grão negro
no olhar dos peixes, e vê onde a carne
se confunde nas pétalas, como ele se dobra
e desce atraído pelas eras inspirando
um cheiro tão rude que não se acha
nos dicionários, assim também toda a luz
força e invade a gestação negra e enche
a boca para sentir na língua aquele nó
essa profundeza extática a raiz exaltada
o núcleo pulsante de uma vida secreta.
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modus operandi
terça-feira, julho 29, 2025
O fim do jornal i
Na última edição de um jornal diário que ambicionou a ligeireza na profundidade, que soube contestar e romper com os estilos que têm estigmatizado o jornalismo, fazemos um esforço por assinalar a diferença e o carácter único deste título que tantas vezes só foi capaz de resistir porque soube ir buscar forças à sua clandestinidade.Ia acabar por acontecer. Na verdade, desde que me juntei à redacção, o fim esteve sempre no horizonte, era a notícia que já sabíamos e diariamente fazíamos de tudo para a adiar. Tornou-se até uma forma de coacção e de chantagem de algumas chefias, que se serviam desse horizonte como critério essencial para nos mergulharem num regime de precarização sem saída. Seja como for, o título foi persistindo à custa desses sacrifícios, e muitos dos que mais deram a este jornal já não integram a equipa, empurrados uns, outros deixaram esta guerra, mas o certo é que todos deram um contributo importante para a desratização da espécie dos profetas da desgraça, e deixaram algo de si no rastro imenso de uma sobrevivência sempre ameaçada, sempre em circunstâncias que nos eram desfavoráveis, e se o i se aguentou isso deveu-se à sua força de clandestinidade, quando o seu trabalho tantas vezes era desconsiderado, arrastando uma lenda reaccionária que, apesar dos esforços em contrário, e mesmo se parcial e injusta, não pudemos superar. Assim fomos caluniados, com uma redacção enfrentando pressões de todos os lados, em que tantos resistiam por romantismo ou desespero, que não raras vezes dançam juntos.
O certo é que, nos 13 anos de vida que eu acompanhei, este jornal sobreviveu a coisas que os seus leitores nem poderiam imaginar, e nem me seria fácil descrever o seu tumultuoso percurso. Até porque tantas das situações com as quais nos vimos confrontados não só nos ultrapassavam como, não sendo nunca explicadas, pareciam ser um aspecto do nosso trabalho, esse de tentar erguer a narrativa a partir de rumores, sendo que, para agora consolidar tudo isso, o esforço exigiria perícias forenses para as quais não estou habilitado. Mas se o único zodíaco veraz nestas coisas é o dinheiro, recompor essa astrologia serviria para nos dar uma complexa teia sobre os enredos financeiros que se digladiaram e entrecruzaram num período de grande agitação nos bastidores da nossa vida política.
A verdade é que, neste século, a imprensa deixou de ser o quarto poder, e viu-se inteiramente absorvida pela malha dos interesses de ordem financeira e especulativa; e justamente quando os nossos responsáveis políticos brandiam os valores da democracia, tudo faziam para degradar qualquer possibilidade de a imprensa recuperar as receitas que tinham sido perdidas para as grandes corporações tecnológicas. Se depois do Estado Novo tivemos algum tempo para intestinar o fascismo, e o país estava esfomeado de política, após décadas de oficialidade, que, como assinala Francisco Umbral, é precisamente o oposto da política, logo depois, colocando os seus ao longo da fronteira com o jornalismo e preparando a infiltração, a vida partidária cedo quis assumir contornos de telenovela, numa pornopolítica constante em que os seus protagonistas procuravam estar metidos nos jornais, dominar o que ali se dizia e, às tantas, já nem se discutiam propriamente ideias nestes, mas apenas homens, uma classe que, no fundo, sempre abominou a possibilidade de um jornalismo de feição romântica, que traduzisse para nativo as tramoias engenhocadas por esta classe nos bastidores, fazendo-lhe uma barragem, tomando para si a herança do espírito de guerra e de crítica, sem aquele oportunismo que degrada a classe e a torna dócil, funcionária. Então, configurada como campo de resistências várias, a típica redacção aparece-nos descrita por Tom Wolfe, no texto introdutório da antologia recolhida por ele e por E.W. Johnson de alguns textos canónicos do New Journalism, como o sonho de qualquer inquilino, um espaço que não está dividido por paredes interiores e em que a hierarquia corporativa não se reconhece pela distribuição ou pelo tamanho dos gabinetes. “O redactor principal trabalhava num espaço tão miserável e encascado como o mais rasteiro dos repórteres. A maioria dos jornais era assim. Esta disposição fora instituída há décadas por razões práticas. Mas era mantida viva por um facto curioso: nos jornais, muito poucos funcionários editoriais da base — nomeadamente, os repórteres — tinham qualquer ambição de subir, de se tornarem editores da cidade, redactores principais, directores ou qualquer outra dessas figuras. Os editores não sentiam ameaças vindas de baixo. Não precisavam de paredes. Os repórteres não queriam muito... apenas ser estrelas, e de um brilho tão mínimo, tão pobre, que nem para candeeiro de parede servia!”
Não foi exactamente isto que eu encontrei quando descobri a imensa nave que o i começou por ocupar no Tagus Park, pois eram instalações soberbas, demasiado dignas para pôr à vontade esses vagabundos celestes que se orientam para autênticas conspirações, mas a possibilidade estava lá. Aberto desde muito cedo, num expediente que se prolongava até altas horas, era um espaço indeterminado, suspenso e, à medida que o dia avançava, que a redação se recompunha pouco antes da hora de almoço, começava a parecer-se com um organismo vivo, dotado de vontade própria. Não era apenas um lugar físico, um sítio laborioso, uma vez que se orientava para a criação de circuitos e eixos sensíveis, traduzindo-se numa força anímica onde podíamos sempre ir beber, regenerar os nossos ímpetos, estando sempre a tremer no ar do dia seguinte. E este, se podia ser leve nas primeiras horas do dia, ia ficando cada vez mais carregado, grave, tenso, à medida que a hora do fecho se aproximava. Então o martelar dos teclados tornava-se frenético como tambores produzindo um avistamento, uma inquietação fenomenal. Criava-se ali uma atmosfera instigante, onde havia espaço para grandes dissonâncias, embates, intrigas, ciumeiras, mas também para essa colaboração que marca uma verdadeira aventura intelectual à revelia de negócios e oportunismos, e que nos permitia espreitar as diferentes atitudes e estratégias para atingir de vários lados um mesmo problema. Isso reconciliava-nos uma e outra vez com o que ali estávamos a fazer. E posso mesmo afirmar que, nos seus melhores momentos, trabalhámos empenhadamente para “outorgar ao quotidiano a dignidade do desconhecido” (Novalis).
O projecto nascera uns três anos antes de eu me juntar à equipa, sendo que, curiosamente, tinha sido chamado para participar num desses estudos de mercado, integrando um grupo a quem foi dada a possibilidade de ler o número zero, discutindo aspectos como o estilo da escrita, a abordagem, a dimensão dos artigos, os elementos gráficos e de composição, o preço. Mas foi só depois que vim a descobrir o tempo íntimo, a incrível velocidade a que operava aquele diário, a sua rebaldaria contagiante, aquela equipa cheia de contrastes, distintas vivências sociais, com a frescura e a inocência de uns, sendo composta por gente que foi testada e levada ao limite num árduo processo de captação de talento estilo NASA. Já eu fui metido à experiência, sem ganhar nada ao longo dos primeiros meses, enquanto se esperava que ganhasse umas noções. Fizeram-me a vida negra, sobretudo enquanto integrei a secção de sociedade, e antes de o António Rodrigues no internacional ter iniciado verdadeiramente a minha formação e ajudado a que pudesse integrar a equipa. Passariam, entretanto, uns cinco anos antes de que, por decisão da Ana Sá Lopes, fosse chamado para integrar a secção de cultura, para a qual já ia colaborando com textos de crítica literária. Mas se inicialmente tinha uma visão meio fascinada do jornalismo, ainda que percebesse já como, em muitos aspectos, este participava dos álibis culturais e desse regime poluente a todos os níveis da nossa vida pública, estas noções amadureceram e, apesar do desastre total que hoje deixa claro como o jornalismo, essa profissão sem a qual não há qualquer possibilidade de sedição ou de compreensão sequer do tempo ou do lugar em que coincidimos, apesar de ter assistido como tudo foi feito para levar esta profissão a uma condição dependente e moribunda, não se desluziu o encanto, e pude admirar personagens e tipos espantosos, audazes, raros, frágeis, complicados, uns sempre sacudindo cinzas, com olheiras até aos joelhos, e outros sempre meio exaltados, levando cada tarefa com o ânimo de alguém a quem fora dada a oportunidade de fazer algo que sempre ambicionara. E ali andávamos naquela hora confusa, a vivê-la como perdidos, mas o que conheci e me impressionou sobretudo foi a quantidade de mulheres, boa parte delas mais novas que eu, de uma inteligência e de um carácter, uma disponibilidade e uma competência que explicavam detalhadamente como o mundo encontra sempre formas de renovar-se. A Marta, a Sílvia, a Ana, a Mariana, a Joana, a Rita, a Beatriz… Não direi mais para não invadir o seu espaço com homenagens abruptas que ninguém me encomendou. Da mesma forma que não vou fazer mira ao número de canalhas, arrivistas ou à jagunçada que limitou sempre o alcance do jornal e o nosso esforço de romper com a cadeia de submissões. Pois se houve gente que passou ali absurdamente talentosa, e que depois foi captada e veio a abrilhantar outros projectos, também não nos faltou uma boa dose desses cadáveres ambíguos que infestam a paisagem mediática, mas, em contraponto com a mediocridade em parada e os colaboracionismos à sorrelfa que todos conhecemos, se uns andavam ocupados a garantir as suas posições, houve margem também para uma ofensiva que ia de alvo em alvo, num traço meditado e explosivo, levando a cabo a tarefa de congeminar esse prazer vigilante que deve gerar-se em quem abre um jornal, criando novas zonas de leitura e de apreensão, encontrando uma linguagem, capaz de abrir o olhar, dilatar a perspectiva, sublinhando as possibilidades concretas de resistência.
Assim, no momento em que o i morre enquanto título autónomo, sou forçado a regressar ao ponto donde partimos e conhecer esse lugar pela primeira vez, aquela redacção onde fui entrando meio assustado, onde tive de lutar para ser admitido, e aprendi que só assim se consegue erguer um projecto de transformação seja do que for, nesse quotidiano que trabalha para fundar uma outra relação, romper com os estilos definidos, trabalhar aquela espécie de motim continuado, uma realidade dinâmica, com gente informada, sagaz, atarefada, formando essa matilha fantasmática. O que ainda me assombra é toda aquela coreografia, e depois a trajectória absurda até ficarmos reduzidos à tripulação de um escaler. E como, mesmo através da pandemia, conseguimos fazer uma edição diária, a qual muitas vezes já nem chegava às bancas, e se tornou assim uma espécie de género literária do fantástico, com os seus uivos-fantasma, tentando manter aquele chinfrim colectivo, quando não éramos mais que um punhado de marinheiros exaustos a tentar manter-nos à tona, com baldes para arrancar a água que prometia afundar-nos, a flutuarmos meio à deriva, e a dançar sem música, numa festa delirante que nunca mais tinha fim. Foi essa espécie de resistência alucinada que nos levou a conhecer o que possa ser essa mistura de exaltação e abandono que é necessária para uma aproximação do infinito. Poderíamos ter continuado a produzir um jornal diário pela eternidade fora, e a redacção seria o nosso hospício, onde tentaríamos captar algo da tumultuosa agitação do universo, vivendo entre fumos, entre o fumo da História e o da actualidade, apreciando as velhas cicatrizes e o cautério aplicado sobre as feridas recentes, empenhados ainda em tudo fazer para que um outro galo nos cantasse amanhã. Aquilo tinha-se tornado uma forma de aquiescência, apaziguadora e excitante, um transbordamento e uma libertação, uma contemplação, a resposta a um esforço de redigir diariamente notícias de um país mesmo que este parecesse ter sido desinventado. Assim o jornalismo começava a parecer-se com uma tarefa anacrónica, utópica, um esforço para estender o coração para longe do tempo, de um tempo em que a crença na realidade se tornou uma forma de quixotismo.
Hoje, os que buscam conhecer o mundo são os verdadeiros agentes patológicos, os seres tidos como românticos, mantendo essa confiança expectante e procurando restituir elementos que possam gerar uma sublevação. O que vim a descobrir ali foi como, neste “país de longa e vendida infância” (Cardoso Pires), tantos anos depois de Abril, no fundo ainda vivemos numa sociedade silenciosa, pois se nos livrámos da censura salazarista, em alguns aspectos tão tosca e fácil de burlar, caímos numa rede de censuras plurais e bem mais complexas e difusas, que vão desde a censura dos partidos, da publicidade, do capricho das sucessivas administrações e, muitas vezes, do ressentimento ou das intrigas entre essas figuras informes que dão orientações e transmitem os constragimentos e ocupam os cargos de administração. Os jornais, hoje, não servem já qualquer função de levantamento, respondendo a desejos extremos, nem a essas profundezas ignoradas, ao que se esconde nas últimas moradas do sangue e que é preciso acordar uma e outra vez. É a falta desse esforço para se subir por dentro, para assumir uma perspectiva mais ampla, para alargar e dilatar o mundo em torno de nós, inserindo-nos no seu ritmo, é isso o que deu cabo do jornalismo.
Deste modo, com a derrota do quarto poder e, particularmente, com a degeneração total da imprensa escrita, o que aconteceu foi que a mentira política deixou de ser um simples recurso demagógico ou um instrumento de convicção, passando a actuar como um stress social. Enquanto as estruturas políticas conservadoras se obstinavam em preservar o sistema censorial como margem de segurança, não se dando conta de que assinavam a sua sentença, chegámos àquele ponto em que a democracia entra numa espiral enlouquecida, se entrega à esparrela, começando a trabalhar contra si mesma, a definhar, enquanto a histeria toma conta das consciências. Nesta hora soa uma espécie de clarim, e emergem das profundezas os seres mais ressentidos, os mais inescrupulosos, esses que são capazes de excitar o furor persecutório e de baixar ainda a outro e outro nível até que, em nome da restituição da ordem, o quotidiano cede à violência mais despudorada. Se, por uns anos, parecíamos estar todos satisfeitos com uma democracia teatral, que bem serviu para entreter quando o país beneficiava dos apoios estruturais, dessa espécie de suborno enquanto nos adaptávamos à condição de zona periférica, de país subalterno (desenvolvendo uma imensa colmeia burocrática e formando legiões de empregados de mesa), a nossa classe dirigente esteve ocupada a favorecer as formas de saque de todas as estruturas que sustentavam o país enquanto coisa pública e comum. Vencida a exaltação e extraordinária mobilização popular que o período revolucionário gerou, essa classe dominante logo se empenhou em repor o quadro de apatia política, refazer a censura como a verdadeira sintaxe do pensamento colectivo, “uma autêntica profilaxia do Estado que não visava apenas controlar mas criar formas de mentalidade adaptadas ao poder” (Cardoso Pires). Assim, com meio século de uma democracia que adquiriu todas as doenças da velhice sem ter sido propriamente jovem ou adulta, a ameaça vem de novo da tendência para instalação de novos fascismos, com a censura e a violência articuladas e legitimadas pelas mentiras, as ficções e os pavores, os quais, ainda que injustificados, conseguem criar esses estados de espírito que são realidades políticas e promovem a nossa infantilização e o abandono à tutela do Estado autocrático, que passa a determinar um horizonte que a todos nos amesquinha. Pelo que, num país em que tantas gerações nasceram no escuro e foram educadas para o medo, por falta de órgãos que fizessem as partes comunicar entre si, é doloroso assistir à forma como este permitiu que o devolvessem a essa menoridade, enchendo-se de alergias da consciência, e permitindo que uma raça de oportunistas excitasse os seus piores sentimentos, virando todos contra todos. Regressamos aos juízos retardados, somos dominados pela economia do ressentimento, por uma estrutura de conflito aberto, num todos contra todos, quando aquilo de que mais precisávamos era de um jornalismo que nos devolvesse algum discernimento, que se aplicasse nesse movimento de crítica impiedosa e agora, mais do que nunca, necessário, uma vez que as nossas cidades estão a transformar-se em cárceres ou labirintos dos quais perdemos a chave.
Na secção em que tive mais responsabilidades, a da cultura, foi isso o que procurámos fazer: impugnar o dirigismo cultural, a composição esclerótica de uma classe que se serve de adornos embusteiros para evitar por todos os meios a autocrítica e que se integrou, de forma servil, no esquema oportunista, procurando safar-se com as migalhas que eram sacudidas da grande mesa para o chão, de forma a obter a solicitude e o conformismo dessa fulanada entretida com os seus prestígios. Mas nunca ninguém teve grandes dúvidas sobre o que era preciso, sobre como o esforço para se erguer uma nova pátria deveria começar pelas redacções, financiadas através de uma lógica de taxação severa sobre as tais indústrias de manipulação das consciências e que canibalizaram, nas últimas duas décadas, toda a receita dos órgãos de informação. Seria preciso que voltassem às redacções aquelas miúdas e miúdos que eu vi darem a este jornal os melhores anos da sua vida, pondo em risco qualquer projecto de vida íntima, relações pessoais, familiares, e não para continuar a ser-lhes exigido o mesmo desgaste, a mesma profissão de fé arrasadora. Quer dizer, gostaria de ver as melhores mentes da minha geração reunidas num espaço imenso, a dilatar inefavelmente essa impressão que temos do mundo ao nosso redor e a ensinar a escrever e até a pensar este país com o seu regime ágrafo: jornalistas com a ossatura de escritores, de detectives, os tais vagabundos com o brio e a ambição desmesurada de irradiarem uma luz que motive uma sublevação extraordinária, lançando-se nessas viagens vertiginosas e pontuais ao mesmo tempo, treinando esse livro solvente com um estilo de desaforos e erros, um tom irrepetível.
É para isso que servem os jornais: para os erros únicos, aqueles que nos são próprios, que demarcam um tempo e um lugar, e sem os quais um país não cresce por si mesmo, mas vive sob a tutela de outros. O fim do i não é o fim de uma ilusão, mas serve para assinalar o quão longe estamos dela e como se perdeu essa velha artesania de redigir artigos para a imprensa que quisessem fazer mais do que vir dar alguma notícia. O importante era o foco, o pacto, a cumplicidade com o leitor. De outro modo damos com esses fósseis que nos vêm contar o mundo, e tudo nos sabe a ranço, tudo parece processado, enlatado, como essa prosa pretensamente objectiva com que nos desgastam, com as habituais fórmulas a que recorre toda a espécie de asnos solenes, esse modo simples, desnatado, de escrever, tocando os tópicos já exaustos, os refrões, as frases feitas, lugares-comuns e vulgaridades anexas que constituem o repertório destes badamecos e moços de recados que vão enchendo as redacções. Estas que restam apenas como fábricas de propaganda e nas quais esses grumetes acham que estão a fazer o seu trabalho porque enxertam elementos estatísticos, ou disputam detalhes nas leituras oficiais, mas, no fundo, exprimem ou adensam a confusão geral, a inércia a que fomos levados num deleite de autocontemplação, porém sempre com noções corrompidas e ociosas. Pois por mais dados, por muito que desafiem a narrativa oficial, ainda não inventaram uma linguagem própria, uma autonomia, a sua força clandestina, algo que possa contrariar essa praga dirigida que continua a operar na maioria dos cadernos, trabalhando para o efeito de salivação com os consumos, para impingir sempre novos produtos, mais algum profeta ou guru, o oportunista da hora. “O mundo está ensurdecido pela cadência”, notava Karl Kraus. “Estou convencido de que as coisas já nem sequer acontecem, antes continuando os clichés a trabalhar sozinhos. (…) A coisa está podre por obra da linguagem. O tempo já cheira mal de tanta frase feita.” E isto porque nos recusamos a viver com algum risco, num país aberto à crítica, que faça desta um ritual tenebroso e exigente, e não um mero vício formal, ficando-se pelo arranhar da ferida apenas para entreter o erro.
Se estamos condenados a um enredo que nos empurra para a frente sem descanso, Kraus lembra que “a fraude que se deixou enganar é a última anedota que ocorre a uma cultura desafinada”. E se nem somos capazes de buscar inspiração e nos reerguer a partir dos exemplos da nossa história recente, dos elementos mais combativos e que tanto fizeram nas redacções por evitar esta profanação do jornalismo, então faríamos bem em lembrar como “a fealdade do tempo presente tem efeitos retroactivos”. Assim, mesmo aqueles que procuram preservar os símbolos e a História, deverão entender que tudo acabará por escoar pelo mesmo ralo. É um imperativo, seja qual for a inclinação ideológica que se tenha, criar as condições para que surjam órgãos autónomos, projectos editoriais robustos, onde se possa ler todo o tipo de propostas de narração, de crónica, e não apenas esse comentarismo parasitário que vive de propagar aquela cadência esgotante. São precisas falhas de energia, espaços onde se possa recompor essa suspensão, ler aquela prosa com pólvora e que se vai salvando dos rigores quanto à vigilância do colesterol. A ideia seria deixar o talento em bruto, agarrado ao ímpeto, à urgência, como um astro embriagado a tentar queimar a página onde foi inscrito, e beneficiando com uma vista profunda sobre a catedral literária, e igualmente de uma boa distância face aos mármores oficiais, a essa sombra de tédio com que nos maçam aquelas traças que, em vez de luz desgarrada e própria, se concentram nas fontes de calor e luz que emitem as zonas de poder.
O jornalismo é uma prática exploratória, gémea das artes, não é uma zona fria, protocolar, mas deve estar disponível para ser repensada, para captar aquela música que só esses poucos que têm os ouvidos já viciados nas selvajarias literárias conseguem aproveitar. Quiseram fazer do jornalismo uma condição subserviente. Foi por isso que nos venderam os discursos do método, e a degradaram como uma mera indústria técnica. Ora, o jornalismo sempre dependeu da ficção, desse talento para gerar formas, traduzir e interpretar a realidade. Mas quiseram impor-nos a patranha da objectividade, como se todos pudéssemos concordar sobre o que é real. E agora que já ninguém opera dentro do mesmo quadro e com os mesmos factos, estão em apuros, porque não sabem restituir o sentido, criando uma linguagem que gere uma nova ficção coesa. E não o sabem fazer porque lhes repugnava a liberdade dos escritores, quiseram enxotá-los das redacções, mesmo o género da crónica foi inteiramente cedido ao bando de aves necrófagas que cercam o cadáver de cada dia. Ora, como bem sabemos, o escritor digno desse nome, neste país, nunca passou da condição de um herege, e nisso também se distingue daqueles que, hoje, são incessantemente alvo do panegírico das nossas páginas de cultura, o tipo de escribas que adaptam os géneros canónicos à prosa dominical que se lê nos jornais, e que, com as suas récitas morais, toma parte na grande missa que continua a apaziguar as tensões mais promissores que ameaçam as redes do poder.
Este tempo, que se abastardou nas formas de escapismo de um lazer que nos treina para a impotência e para a total ineptidão, em termos de convívio, de gerar focos conspirativos, este tempo continua à espera, buscando mal e nos lugares errados as metáforas atrozes que lhe façam sentir a sua verdadeira condição. O jornal i não fez tanto quanto podia ter feito, mas foi o único jornal que nos últimos anos se aproximou dessa condição experimental, com o seu tom desassombrado, nuns momentos mais irónico, noutros frívolo, mas esforçado, feito sem o peso de se achar o centro deste mundo ou de outro, sem o pedantismo que é típico dos nossos jornais tidos por órgãos de referência e que, na verdade, são precisamente os alvos abater no momento em que surjam órgãos de comunicação para nos falar de uma realidade que começará por soar como uma ficção hostil, desavergonhada, sobre o país que esteve à beira de um privatização de tal ordem que até os espíritos já só balbuciavam números, se algarismavam, incapazes de sustentar esse estremecimento que carregam em si as palavras.
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segunda-feira, julho 21, 2025
O Jornal de Letras, sob o signo da agonia
Está bem, porra, falemos então desse cadáver na única altura em que parece estar quente: o Jornal de Letras, espécie de dinossauro com tamanho e atitude de pulga, e, por isso mesmo, tão fabulosamente adaptado às condições do meio, tendo sobrevivido por tempo demais (quarenta e cinco outonos, tanta folha amarelecida a bloquear as goteiras), e graças desde logo à sua irrelevância, tendo-se tornado nos últimos vinte, com aquelas varizes que já se lhes via na cara, uma espécie de boletim paroquial da cultura institucional, esbanjando o incenso da reverência, aquela ânsia sabuja de se pôr ao serviço, comerciar favores, oferecer recreio para o engodo publicitário, treinar o livro de estilo vassalo, cheio de mesuras, com aquela lengalenga untuosa. Ali estava uma instância de estágio essencial a qualquer carreira orientada para fazer o frete a torto e a direito, apontando ao Olimpo dos tarecos, numa escalada a afinar a língua pelo orifício de quem segue à frente, esse ritual incessante de quem vai sempre a favor da corrente e com a língua a remar. O destino da coisa estava há muito selado, e agora aquela agonia soa à falência da nossa funerária das letras, um sexto acto de uma peça arrastada, como convém aos espectáculos de fachada em que nada morre verdadeiramente — apenas muda de pasta ou de promotor. Nas últimas décadas, o JL desfizera-se inteiramente da função crítica, actuante, polémica, que o poderia ter mantido vivo, mas vivo, e não aí só a servir de realejo sempre com aquela modinha para compor o desarranjo em fundo. Preferiu o regime da mão estendida, bater com o pires em todas as colectas, ser a folha dos arranjinhos, da forma mais despudorada, e sem ao menos ter um capítulo de classificados para o mais proveitoso e desassombrado comércio da carne. Era o nosso jornal de cerimónias, onde as castas rameiras da cena cultural afogavam a madalena dando-se aquele chá de relva, coçando as costas umas das outras sob o pretexto da divulgação. Escrevia-se sempre com luvas: tudo era «notável», «imperdível», «inestimável» — adjectivação automática ao serviço de um consenso mole. O espaço para o dissenso, para a fricção, para a polémica, só lendo à lupa nas entrelinhas. Não faltava era superfície para anunciantes, para o exercício da crónica vaidosa, a entrevista obsequiosa, a promoção de eventos desses que provocam logo o bocejo ou, na melhor das hipóteses, a risota perante o desespero dos mesmos em comparecer diante dos funcionários de arquivos e bibliotecas, dos vigilantes de buracos com gavetas cheias de fichas ilegíveis e fungos, das bezerras mal mortas, dos algaliados arrastados daqui para além ao sabor dos humores de obscuros gabinetes, dos putos das C+S de Alcolhões ou Alcaguideche, enfiados num autocarro e despejados sempre que é necessário justificar despesas com os "nossos" agentes culturais. Era, enfim, um jornal para essas letras atarantadas, sem instinto ou urgência, sem unhas nem dentes, letras como dentaduras postiças, tretas, balelas, lérias, água de colónia feita de bichos da prata esmagados, uma ideia de cultura que apenas serve a reprodução dos tiques de uma manada complacente. E mereceu bem aquilo que lhe foi feito, como se desfizeram deste título entre outros, e o seu fim inscreve-se numa operação mais vasta e que merecia servir a um grande estudo de caso quanto ao Esquema, à disciplina para enredar tansos, uma manobra que, não por acaso, nunca vimos denunciada naquelas páginas, e que foi orquestrada com precisão por essa corporação-múmia que é a Impresa, onde nada é feito ao acaso. A pseudo-venda dos títulos à entidade fantasma Trust in News não passou de um jogo de espelhos, um estratagema para poupar a Impresa à vergonha do desmantelamento. A encenação permitiu-lhes amputar os membros menos apetecíveis daquele cabaz editorial sem deixar o cheiro a putrefacção colar-se aos títulos e negócios centrais do império Balsemão. Foi um descarte higiénico, mas não menos brutal por isso: cortou-se o tubo da ventilação ao JL e a outros títulos, uns de feição mais jornalística, outros exigindo mais do panetone publicitário, e nada se orientou por uma questão de princípios, mas por necessidade de fazer o abate longe de casa, para não ouvir o ganido, os balidos dos inocentes. O Balsemão dava muitas aulas de comunicação a estes cordeiros, mas o que teria interesse era ouvi-lo explanar sobre aspectos de gestão e cálculo quanto a possíveis danos reputacionais. Ficava mal na autobiografia e auto-hagiografia acabar com uma cena em que o grande fundador tinha o dedo no botão da maior incineradora de títulos de imprensa. Quanto ao JL, este não morrerá, não exactamente, pois tem de haver uma folheca de supermercado para as promoções na ala da "cultura standard", um andar modelo para servir de pastagem aos bonzos que se vão safando à margem do frenesi do matadouro e das nuvens de sucessivas desratizações. Alguma outra coisa igualmente bolorenta há-de surgir para colher e enxertar a publicidade institucional, os mil e um esquemas para distribuir as verbas autárquicas, para justificar as políticas áulicas que dão jeito nem que seja para calar uns e obter de outros a sua placidez conformista. Assim, o jornal não se fina, vai refinar-se, e daqui por uns tempos já aí andará outro panfleto com as fuças dos mesmos, essas colecções outono-e-tanas que entram e saem sempre na mesma, como é próprio dos pavões, com aquela histeria a encher os jardins onde não há crianças em número suficiente para afinar a pontaria e expor estes irritantes galináceos. Felizmente, é o fim da linha para o Vasconcelos, nome que sempre me pareceu bom para baptizarmos em sua honra um instrumento de cordas lassas ou uma doença nos tomates. Basta ir ler a última crónica do bicho, mais um suspiro abafado, e um silêncio cúmplice, a rezar e a ver se ainda o safam, se o balão de soro pinga ainda mais qualquer coisa. E se anda para aí a turma das carpideiras do costume, a lamentar o ponto a qu'isto chegou, estas a fungar-se todas e encher as mangas de ranho, isso já é um traço da natureza da cultura oficial, que, quando não mama, só lhe resta chorar.
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perspectivas
sexta-feira, julho 11, 2025
Nalgum canto, um vestígiodo reino esquecido.Julio Cortázar
Fala baixo, fala miúdo
diz-lhes adeus muitas vezes antes
de começares, pisa um galho
para alarmar a noite e sentir como pode
ainda ser vasta, faz à fome
um sinal, e aquilo que vive de nós
virá dos seus passeios, como por vezes
se ouve por aí, meio desvairada
ávida de distâncias, digerindo
o que nos escapa,
a música dos que se afastam,
dos desaparecidos,
lembra-te desses corpos vagos
e vibrantes muitos aos pedaços
rascunhos cheios de talento
que tomavam o balanço a febre se um
impulso os mordesse, sabendo bem
como a odisseia ainda foram primeiro
as cicatrizes, o nome dado a cada
uma, como este e aquele (mais tarde
reunidos numa só voz) fizeram inversamente
o percurso, revestindo a dor,
suportando o florescer dos pormenores,
inábeis num momento noutro já
ardilosamente infiéis, íntimos da falha
do impossível, narram então
com delícia e verdadeiro horror, aprendem
como no final de contas a guerra
é apenas um modo de falar,
a meio quem fala bebe um copo
de água, assim o mar na descrição
ganha a cor do vinho,
alimentam-se das imagens raras
sugeridas por todos os que ficaram e
agora deliram, rasgando a língua
materna, e se esta mordia o lábio
enquanto costurava, a agulha
exigindo a firme lentidão, a história
vem e precipita tudo, quem faz
o caminho de volta não protege a memória
abandona-a ao assombro, à invenção
de quem nunca irá, regressa
traz a lenda, os ecos de línguas absurdas
e é do balanço destas que nasce a folga,
a paixão dos que vão inventar
corpos urgentes, mordendo provando
olham com um tal desafio os outros
desfeitos pela demora,
e se não sabem o suficiente
dos idiomas do pó, preferem os
detalhes agressivos, doentes,
que nos impedem de chegar ao todo.
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modus operandi
quarta-feira, julho 02, 2025
Ir para a fronteira, a linha mais crua a mais
longínqua, a dos ritmos que soam
do outro lado da cordilheira, como sinais
de fumo. Nós tivemos de esperar anos antes
que o lume do canto cozesse
tudo o que lhe demos, que confiança
havia nesses gestos propagados
ao longo de gerações, foi antes
de se falar de um, não começava aí
mas por impressões e substantivos
em vias de desaparecimento, terras virgens
restos alucinados, uns quantos bicos
de pássaros e o vento tingido
de um sabor a carne,
nada foi desperdiçado, nada se erodiu.
Os nomes que nos pedem as coisas
admiráveis, dolorosas, tudo isso
como uma língua que só se fala no escuro
explica porque se beijam na boca os poetas
e se reconhecem sós, enquanto
outros fazem-no por imitação
e teatro. De corpo a corpo
verte-se a alegria, como a flauta
que o russo fez a partir das vértebras,
dando aquele concerto antes de matar-se.
Em segredo, tantos o escutaram.
O vento começara a morrer,
tínhamos perdido o sul, as luzes ecoando
sobre as águas, depois de um ponto
nenhum grito sobrevive mais que uns dias
Os pássaros não pousam,
tudo fica pendurado, mesmo cá dentro.
Uma chamada cobre a mais longa
distância, cheia de cortes,
e se mal abrimos a boca, ouvimos mais
e cada detalhe ferve a imaginação.
Se alguém dissesse a palavra
de que precisamos, se cada homem
valesse pelo último, comendo pela última vez
o bolo de gengibre dispersando as aparas
ao pegar na chávena beber um gole
sentindo a dignidade dessa luz,
dos cinco minutos que se seguem.
Deixa as janelas repletas de versos,
como se erguesse o próprio crânio, mas
para quem?, e as sequências que regista
serão os estorninhos, a beleza que precisa
de tradução apenas para morrer duas vezes?
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modus operandi
segunda-feira, junho 16, 2025
Ainda seguimos os fogos
cultivados de noite por homens que lêem
para se salvar
temos lido uns para os outros
na busca das coisas mais ofensivas,
tudo quanto possa
compensar-nos destas vidas,
da total falta de brilho da época.
Já não temos clientes, e agora só
atraímos os indígenas do fundo do poço.
Tocamos o vidro e as mãos, fazemos
perguntas, olhamo-nos
pelo reflexo,
acenamos a esses estranhos
prestes a serem esquecidos.
Parece uma boa altura para beber
com verdadeiro afinco,
despenhar-me junto dos vasos,
arrastar-me pela casa como uma estrela
moribunda, abrir a janela e
pedir milagres, ouvir o vento dizer
que sim.
Ponho os envelopes na mesa, leio
os cantos das cartas,
das fotografias, vejo o quarto como era
quando ela deslocava sinais na pele
como lhe apetecia,
e falava baixo, gerando um favor
silencioso ao seu redor.
Não retirávamos as flores antes
de se parecerem com fósforos ardidos.
A essa luz vi o avesso do mundo, e fui
a sensação de ser miúdo já tarde,
de nos ouvir tão próximos os passos
compondo a noite, decorando detalhes,
e depois lendo as cartas ressuscitei
a mesma chama sagrada
e parece-me que ainda nos oiço falar
uma língua cada vez mais estranha,
e gosto de medir a expansão do universo
através desta distância.
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segunda-feira, junho 02, 2025
Ela muda-se a um canto
sem se importar que eu veja,
e eu vejo
siderado com cada linha,
tão pálida que lhe posso ver os órgãos,
vai demorar uns dois meses ainda
para que conte com as minhas mãos,
e mesmo então
não vamos passar dos lábios,
trocamos bilhetes, frases impossíveis
de serem levadas a um sentido,
e logo assinamos a noite por mais
desfeita que nos surja. Nesta cidade
não há bares onde nos possamos
pendurar nalgum piano, numa voz
que cante velhos refrões, que cante o resto
o chuvisco das vagas, as sombras órfãs
esse outro mundo que a aranha
trafica ao lado da cama em nosso nome.
Fazemos de loucos, dos que têm
a memória aberta, indo por conversas
longas e ferozes como os séculos,
debruçados sob um tabuleiro
com esses escaravelhos negros
que guardam a luz dos astros.
Apontam, tocam sem descanso
música nenhuma,
ali onde tudo foi entornado vive
ainda fresco um reflexo antigo,
esse país a que virámos costas,
esse contorno a giz que quisemos
apagar com os punhos.
Enquanto houver algo de sonoro
em nós, deve valer a pena,
podemos estudar os horários
dos comboios, filmar nuvens, as horas,
raspar o esqueleto do pardal monstruoso
do fundo da gaveta, e com gestos
pouco práticos, sem alcance
respondermos em voz baixa anos depois
às piores coisas que nos disseram.
Em breve os anos e as flores
estarão proibidos. E depois?
Que fizeste da tua fidelidade? Que fiz eu
guiado pelo cheiro de outro corpo?
Andei por estranhos quartos e
a membrana do coração despegou-se. Hoje
tenho pouco, nestas alturas só mesmo
uma palavra: inferno. Mas se vissem
quanto deste mundo fui arrastando
para lá
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terça-feira, maio 06, 2025
Já não há lugares proibidos, vamos
e connosco vem uma espécie de terror
de frieza alucinante, essa
das grandes distâncias, das eras
que nos defendem e separam.
Há palavras capazes de pôr ordem
às tempestades, e outras que arrancam
qualquer reflexo ou eco deste mundo
deixando um rosto vazio de si mesmo.
Nas paredes de alguns refúgios destruídos
ainda se lê a magia dessas frases.
Deixamos este pingar demente de épocas
entregues à ressaca e vamos
cosendo as noites entre si,
colhemos à superfície de uma vida veloz
detalhes frescos rudes absurdos,
deixamos e sofremos as marcas,
toda a ausência que se pode suportar,
também pelo prazer de nos sentirmos
longínquos, avistados uns pelos outros
mas tão incertamente
e a meio de raras metamorfoses.
A noite pode ter sido tudo
o que exigimos da vida,
e como era doce então sair da cama
olhar algum vestido desfeito por mãos
apressadas, sentir o mijo bater
na água e desfazer todos os contos de fada.
Apreciar o vulgar afecto que trocamos
como alegres anjos retardados,
seguindo na pele uns dos outros o brilho
dessas luas a atravessar os lagos desertos.
Algum de nós pôde deitar-se com Joyce
Mansour, mordeu-lhe o lábio inferior
com vontade de o desmanchar para sempre,
outro aproveitou-se o mais que pôde
de Colette, mas elas e outras
também nunca nos deixaram sair vivos
desses quartos. E neles descobrimos
juntos como os corpos são apenas
tão belos quanto a dor que os espera.
Depois as histórias prolongam-se
livrando-se de qualquer sentido,
dando cabo de todas as ilusões.
Os que ouvem, já sabem e riem…
Como os beijos morrem tão depressa,
e as bocas duram menos que um segredo.
Mais tarde algum covarde dirá o pior
dos que se amaram.
E terá toda a razão. Mas só contará
as migalhas, só verá o que tem
ao seu alcance. Falámos tão baixo,
tínhamos essa pouca voz de quem
se despede, de quem arranca à carne
cada um dos frutos, a dor, a própria fome.
Afinal, o paraíso fica tão perto do inferno,
mas isto só o sabem os poucos
capazes de ir e voltar.
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domingo, abril 27, 2025
O caminho vai ficando estreito,
amanhecerá mais um punhado de vezes
e outras por favor, mas só resta uma substância
insegura, sem a menor intenção, e depois
o ocasional amanhecer marinho, largo,
e alguém talvez se esforce por traduzir
as memórias do vento, salvar um parafuso
do carrossel desfeito, a impressão de um
soluço mecânico. Assobiamos os caminhos
estas estradas, mesmo as borras tipográficas,
admiramos uns tantos que preferem viver sem
pontuação, espiando o acaso,
a melodiosa intriga de uma paisagem
suspensa, esses lugares onde a realidade
parece inacabada. Um dia perderemos
a relação com o tempo, às vezes eu
já gosto de lamber a faca ao fim de dias,
tantos usos, o gosto misturado e
esse jogo de lançar a imaginação
pelo penhasco, entre a névoa, ler só
estórias de fantasmas, pressentir como
só os desastres ainda têm ouvido
para o que busca o outro lado da vida.
Saímos a meio da noite, e temos horas
com gravações de insectos, frases
recortadas, sobrepostas,
o relevo nocturno, o burilar e o eco
das chuvas depois de terem cedido
as traves do céu. Gosto de ver esbater-se
na água a minha carne de lua e de orvalho.
Passamos horas diante de uma chávena,
como aranhas, a estender alguma teia
a inventar presas. Entretanto,
o nosso nome já nem parece funcionar
ou responder seja a quem for. Na rádio,
do que pude perceber vem aí outra,
estão a matar aves todas as semanas,
às centenas de milhares. Se não for isso,
será outra coisa. Estamos habituados.
O fim fez de todos nós detectives
implacáveis cronistas, habitantes da orla.
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quarta-feira, abril 23, 2025
Para voltarmos vivos virgens a certos
lugares faz-nos falta outro rosto, um
desses familiares, suaves, que não insistem
no quanto hoje somos ilegais, desolados,
rudes uns para os outros,
mas nunca chega a haver desordem
mal nos olhamos, só por delírio
nos parece que alguém cruza as linhas,
algum morto elogia uma jovem,
faz de um vestido amarelo um acontecimento,
e que inveja lhes temos, aos mortos.
Eles, que perderam toda a vergonha,
têm esse talento de quem raspou
até ao fundo a cova que lhes foi destinada,
regressando aos prazeres que nós
por fraqueza desdenhamos.
Só para os vermes os mortos
são todos iguais, diz Müller, e é evidente
como a respiração de alguns provoca
nas nossas vidas um estranho efeito…
Deste, o sangue deixa-nos na boca
um gosto impossível, faz-nos acreditar
na aventura de um sincero luto,
aquele acusa-nos de tudo, pela ausência
de vícios gozos perversões, transpiramos
e não se pode resistir à proximidade
a forma como rebenta e nos desfaz
em espuma cada pulsação deles,
esses corações que pararam de bater
deixaram de justificar-se, são mais audíveis
cavalgando todos os ecos, têm
uma avidez, aqueles gestos seguidos,
flagrantes, aquela alegria de estar diante
das belas coisas novas, aquela pressa
e como têm nomes sempre, os mais vivos
para aquilo que mais se esquiva, ah
essa gravidade que só conhecemos
de alguns seres quando já só lhes resta
uma frase, entre a poeira secular dos livros
um perfume indecente, o embalo e a sombra
que liga as passagens mais desconexas,
eis a religião dos canibais, a que força
e desenreda a memória, a música dessas
coincidências decisivas. Derrubam-nos
seduzem magoam, falam tão baixo e
não se perde nada, levam-nos a lugares
onde pode ainda exclamar-se
com terrível sinceridade: como a vida
é lenta, e a esperança violenta,
como são ainda perseguidos os encantos
absurdos, ainda que por poucos,
os que nos engolem na sua névoa instintiva,
nos grandes bosques, sem horários,
nesses precipícios antigos, sem placas,
só vertigem. Lugares como esse jardim marinho
onde também eu deixei os meus remos.
Alguém sorri, prefere jogar às cartas,
inventar posses, apostar tudo e exibir
enfim o pescoço, mas com uma tal disposição
de morrer, que mostra o sem sentido da coisa.
Homens esquecidos por certas mulheres
têm iluminações destas.
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terça-feira, abril 22, 2025
É precisa alguma coragem
para fechar os olhos neste mundo,
e nós sempre apostámos contra nós
a favor da imaginação que nos corrói
afiando algum trovão um fio entre coisas
de nada, reescrito mil vezes atravessando
quantos cadernos, num brilho
em que se cruzam os suaves solitários,
culpados, mal dormimos e tantos são já
os sonhos a aguardar a sua vez.
Ficamos a ler quietos à luz dos fogos
de um mundo a desmoronar-se
com uma destas canções ordinárias
mas doces a tocar em fundo.
Não tens quase nada no quarto,
umas flores secas, as frequências de uns
poucos, o morse que resgatamos entre
as paredes finas deste século, neste profundo
asilo ouve-se a água, o cerco, as ervas
que crescem por aí, os livros na cómoda,
a ilha que recuperaste sozinho,
as frágeis espécies inventadas metidas
debaixo de astros que ninguém incomoda.
Depois de uns anos de estranheza,
torna-se um gosto sentir a ferrugem
nos ossos, tremer de ideias que se colhe
como frutos negros que a cada hora
nos refazem a boca, o olhar, a perspectiva,
e ficamos nessa conversa fiada,
gozando a imoralidade própria
dos que se sabem sórdidos mortais.
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