Na última edição de um jornal diário que ambicionou a ligeireza na profundidade, que soube contestar e romper com os estilos que têm estigmatizado o jornalismo, fazemos um esforço por assinalar a diferença e o carácter único deste título que tantas vezes só foi capaz de resistir porque soube ir buscar forças à sua clandestinidade.Ia acabar por acontecer. Na verdade, desde que me juntei à redacção, o fim esteve sempre no horizonte, era a notícia que já sabíamos e diariamente fazíamos de tudo para a adiar. Tornou-se até uma forma de coacção e de chantagem de algumas chefias, que se serviam desse horizonte como critério essencial para nos mergulharem num regime de precarização sem saída. Seja como for, o título foi persistindo à custa desses sacrifícios, e muitos dos que mais deram a este jornal já não integram a equipa, empurrados uns, outros deixaram esta guerra, mas o certo é que todos deram um contributo importante para a desratização da espécie dos profetas da desgraça, e deixaram algo de si no rastro imenso de uma sobrevivência sempre ameaçada, sempre em circunstâncias que nos eram desfavoráveis, e se o i se aguentou isso deveu-se à sua força de clandestinidade, quando o seu trabalho tantas vezes era desconsiderado, arrastando uma lenda reaccionária que, apesar dos esforços em contrário, e mesmo se parcial e injusta, não pudemos superar. Assim fomos caluniados, com uma redacção enfrentando pressões de todos os lados, em que tantos resistiam por romantismo ou desespero, que não raras vezes dançam juntos.
O certo é que, nos 13 anos de vida que eu acompanhei, este jornal sobreviveu a coisas que os seus leitores nem poderiam imaginar, e nem me seria fácil descrever o seu tumultuoso percurso. Até porque tantas das situações com as quais nos vimos confrontados não só nos ultrapassavam como, não sendo nunca explicadas, pareciam ser um aspecto do nosso trabalho, esse de tentar erguer a narrativa a partir de rumores, sendo que, para agora consolidar tudo isso, o esforço exigiria perícias forenses para as quais não estou habilitado. Mas se o único zodíaco veraz nestas coisas é o dinheiro, recompor essa astrologia serviria para nos dar uma complexa teia sobre os enredos financeiros que se digladiaram e entrecruzaram num período de grande agitação nos bastidores da nossa vida política.
A verdade é que, neste século, a imprensa deixou de ser o quarto poder, e viu-se inteiramente absorvida pela malha dos interesses de ordem financeira e especulativa; e justamente quando os nossos responsáveis políticos brandiam os valores da democracia, tudo faziam para degradar qualquer possibilidade de a imprensa recuperar as receitas que tinham sido perdidas para as grandes corporações tecnológicas. Se depois do Estado Novo tivemos algum tempo para intestinar o fascismo, e o país estava esfomeado de política, após décadas de oficialidade, que, como assinala Francisco Umbral, é precisamente o oposto da política, logo depois, colocando os seus ao longo da fronteira com o jornalismo e preparando a infiltração, a vida partidária cedo quis assumir contornos de telenovela, numa pornopolítica constante em que os seus protagonistas procuravam estar metidos nos jornais, dominar o que ali se dizia e, às tantas, já nem se discutiam propriamente ideias nestes, mas apenas homens, uma classe que, no fundo, sempre abominou a possibilidade de um jornalismo de feição romântica, que traduzisse para nativo as tramoias engenhocadas por esta classe nos bastidores, fazendo-lhe uma barragem, tomando para si a herança do espírito de guerra e de crítica, sem aquele oportunismo que degrada a classe e a torna dócil, funcionária. Então, configurada como campo de resistências várias, a típica redacção aparece-nos descrita por Tom Wolfe, no texto introdutório da antologia recolhida por ele e por E.W. Johnson de alguns textos canónicos do New Journalism, como o sonho de qualquer inquilino, um espaço que não está dividido por paredes interiores e em que a hierarquia corporativa não se reconhece pela distribuição ou pelo tamanho dos gabinetes. “O redactor principal trabalhava num espaço tão miserável e encascado como o mais rasteiro dos repórteres. A maioria dos jornais era assim. Esta disposição fora instituída há décadas por razões práticas. Mas era mantida viva por um facto curioso: nos jornais, muito poucos funcionários editoriais da base — nomeadamente, os repórteres — tinham qualquer ambição de subir, de se tornarem editores da cidade, redactores principais, directores ou qualquer outra dessas figuras. Os editores não sentiam ameaças vindas de baixo. Não precisavam de paredes. Os repórteres não queriam muito... apenas ser estrelas, e de um brilho tão mínimo, tão pobre, que nem para candeeiro de parede servia!”
Não foi exactamente isto que eu encontrei quando descobri a imensa nave que o i começou por ocupar no Tagus Park, pois eram instalações soberbas, demasiado dignas para pôr à vontade esses vagabundos celestes que se orientam para autênticas conspirações, mas a possibilidade estava lá. Aberto desde muito cedo, num expediente que se prolongava até altas horas, era um espaço indeterminado, suspenso e, à medida que o dia avançava, que a redação se recompunha pouco antes da hora de almoço, começava a parecer-se com um organismo vivo, dotado de vontade própria. Não era apenas um lugar físico, um sítio laborioso, uma vez que se orientava para a criação de circuitos e eixos sensíveis, traduzindo-se numa força anímica onde podíamos sempre ir beber, regenerar os nossos ímpetos, estando sempre a tremer no ar do dia seguinte. E este, se podia ser leve nas primeiras horas do dia, ia ficando cada vez mais carregado, grave, tenso, à medida que a hora do fecho se aproximava. Então o martelar dos teclados tornava-se frenético como tambores produzindo um avistamento, uma inquietação fenomenal. Criava-se ali uma atmosfera instigante, onde havia espaço para grandes dissonâncias, embates, intrigas, ciumeiras, mas também para essa colaboração que marca uma verdadeira aventura intelectual à revelia de negócios e oportunismos, e que nos permitia espreitar as diferentes atitudes e estratégias para atingir de vários lados um mesmo problema. Isso reconciliava-nos uma e outra vez com o que ali estávamos a fazer. E posso mesmo afirmar que, nos seus melhores momentos, trabalhámos empenhadamente para “outorgar ao quotidiano a dignidade do desconhecido” (Novalis).
O projecto nascera uns três anos antes de eu me juntar à equipa, sendo que, curiosamente, tinha sido chamado para participar num desses estudos de mercado, integrando um grupo a quem foi dada a possibilidade de ler o número zero, discutindo aspectos como o estilo da escrita, a abordagem, a dimensão dos artigos, os elementos gráficos e de composição, o preço. Mas foi só depois que vim a descobrir o tempo íntimo, a incrível velocidade a que operava aquele diário, a sua rebaldaria contagiante, aquela equipa cheia de contrastes, distintas vivências sociais, com a frescura e a inocência de uns, sendo composta por gente que foi testada e levada ao limite num árduo processo de captação de talento estilo NASA. Já eu fui metido à experiência, sem ganhar nada ao longo dos primeiros meses, enquanto se esperava que ganhasse umas noções. Fizeram-me a vida negra, sobretudo enquanto integrei a secção de sociedade, e antes de o António Rodrigues no internacional ter iniciado verdadeiramente a minha formação e ajudado a que pudesse integrar a equipa. Passariam, entretanto, uns cinco anos antes de que, por decisão da Ana Sá Lopes, fosse chamado para integrar a secção de cultura, para a qual já ia colaborando com textos de crítica literária. Mas se inicialmente tinha uma visão meio fascinada do jornalismo, ainda que percebesse já como, em muitos aspectos, este participava dos álibis culturais e desse regime poluente a todos os níveis da nossa vida pública, estas noções amadureceram e, apesar do desastre total que hoje deixa claro como o jornalismo, essa profissão sem a qual não há qualquer possibilidade de sedição ou de compreensão sequer do tempo ou do lugar em que coincidimos, apesar de ter assistido como tudo foi feito para levar esta profissão a uma condição dependente e moribunda, não se desluziu o encanto, e pude admirar personagens e tipos espantosos, audazes, raros, frágeis, complicados, uns sempre sacudindo cinzas, com olheiras até aos joelhos, e outros sempre meio exaltados, levando cada tarefa com o ânimo de alguém a quem fora dada a oportunidade de fazer algo que sempre ambicionara. E ali andávamos naquela hora confusa, a vivê-la como perdidos, mas o que conheci e me impressionou sobretudo foi a quantidade de mulheres, boa parte delas mais novas que eu, de uma inteligência e de um carácter, uma disponibilidade e uma competência que explicavam detalhadamente como o mundo encontra sempre formas de renovar-se. A Marta, a Sílvia, a Ana, a Mariana, a Joana, a Rita, a Beatriz… Não direi mais para não invadir o seu espaço com homenagens abruptas que ninguém me encomendou. Da mesma forma que não vou fazer mira ao número de canalhas, arrivistas ou à jagunçada que limitou sempre o alcance do jornal e o nosso esforço de romper com a cadeia de submissões. Pois se houve gente que passou ali absurdamente talentosa, e que depois foi captada e veio a abrilhantar outros projectos, também não nos faltou uma boa dose desses cadáveres ambíguos que infestam a paisagem mediática, mas, em contraponto com a mediocridade em parada e os colaboracionismos à sorrelfa que todos conhecemos, se uns andavam ocupados a garantir as suas posições, houve margem também para uma ofensiva que ia de alvo em alvo, num traço meditado e explosivo, levando a cabo a tarefa de congeminar esse prazer vigilante que deve gerar-se em quem abre um jornal, criando novas zonas de leitura e de apreensão, encontrando uma linguagem, capaz de abrir o olhar, dilatar a perspectiva, sublinhando as possibilidades concretas de resistência.
Assim, no momento em que o i morre enquanto título autónomo, sou forçado a regressar ao ponto donde partimos e conhecer esse lugar pela primeira vez, aquela redacção onde fui entrando meio assustado, onde tive de lutar para ser admitido, e aprendi que só assim se consegue erguer um projecto de transformação seja do que for, nesse quotidiano que trabalha para fundar uma outra relação, romper com os estilos definidos, trabalhar aquela espécie de motim continuado, uma realidade dinâmica, com gente informada, sagaz, atarefada, formando essa matilha fantasmática. O que ainda me assombra é toda aquela coreografia, e depois a trajectória absurda até ficarmos reduzidos à tripulação de um escaler. E como, mesmo através da pandemia, conseguimos fazer uma edição diária, a qual muitas vezes já nem chegava às bancas, e se tornou assim uma espécie de género literária do fantástico, com os seus uivos-fantasma, tentando manter aquele chinfrim colectivo, quando não éramos mais que um punhado de marinheiros exaustos a tentar manter-nos à tona, com baldes para arrancar a água que prometia afundar-nos, a flutuarmos meio à deriva, e a dançar sem música, numa festa delirante que nunca mais tinha fim. Foi essa espécie de resistência alucinada que nos levou a conhecer o que possa ser essa mistura de exaltação e abandono que é necessária para uma aproximação do infinito. Poderíamos ter continuado a produzir um jornal diário pela eternidade fora, e a redacção seria o nosso hospício, onde tentaríamos captar algo da tumultuosa agitação do universo, vivendo entre fumos, entre o fumo da História e o da actualidade, apreciando as velhas cicatrizes e o cautério aplicado sobre as feridas recentes, empenhados ainda em tudo fazer para que um outro galo nos cantasse amanhã. Aquilo tinha-se tornado uma forma de aquiescência, apaziguadora e excitante, um transbordamento e uma libertação, uma contemplação, a resposta a um esforço de redigir diariamente notícias de um país mesmo que este parecesse ter sido desinventado. Assim o jornalismo começava a parecer-se com uma tarefa anacrónica, utópica, um esforço para estender o coração para longe do tempo, de um tempo em que a crença na realidade se tornou uma forma de quixotismo.
Hoje, os que buscam conhecer o mundo são os verdadeiros agentes patológicos, os seres tidos como românticos, mantendo essa confiança expectante e procurando restituir elementos que possam gerar uma sublevação. O que vim a descobrir ali foi como, neste “país de longa e vendida infância” (Cardoso Pires), tantos anos depois de Abril, no fundo ainda vivemos numa sociedade silenciosa, pois se nos livrámos da censura salazarista, em alguns aspectos tão tosca e fácil de burlar, caímos numa rede de censuras plurais e bem mais complexas e difusas, que vão desde a censura dos partidos, da publicidade, do capricho das sucessivas administrações e, muitas vezes, do ressentimento ou das intrigas entre essas figuras informes que dão orientações e transmitem os constragimentos e ocupam os cargos de administração. Os jornais, hoje, não servem já qualquer função de levantamento, respondendo a desejos extremos, nem a essas profundezas ignoradas, ao que se esconde nas últimas moradas do sangue e que é preciso acordar uma e outra vez. É a falta desse esforço para se subir por dentro, para assumir uma perspectiva mais ampla, para alargar e dilatar o mundo em torno de nós, inserindo-nos no seu ritmo, é isso o que deu cabo do jornalismo.
Deste modo, com a derrota do quarto poder e, particularmente, com a degeneração total da imprensa escrita, o que aconteceu foi que a mentira política deixou de ser um simples recurso demagógico ou um instrumento de convicção, passando a actuar como um stress social. Enquanto as estruturas políticas conservadoras se obstinavam em preservar o sistema censorial como margem de segurança, não se dando conta de que assinavam a sua sentença, chegámos àquele ponto em que a democracia entra numa espiral enlouquecida, se entrega à esparrela, começando a trabalhar contra si mesma, a definhar, enquanto a histeria toma conta das consciências. Nesta hora soa uma espécie de clarim, e emergem das profundezas os seres mais ressentidos, os mais inescrupulosos, esses que são capazes de excitar o furor persecutório e de baixar ainda a outro e outro nível até que, em nome da restituição da ordem, o quotidiano cede à violência mais despudorada. Se, por uns anos, parecíamos estar todos satisfeitos com uma democracia teatral, que bem serviu para entreter quando o país beneficiava dos apoios estruturais, dessa espécie de suborno enquanto nos adaptávamos à condição de zona periférica, de país subalterno (desenvolvendo uma imensa colmeia burocrática e formando legiões de empregados de mesa), a nossa classe dirigente esteve ocupada a favorecer as formas de saque de todas as estruturas que sustentavam o país enquanto coisa pública e comum. Vencida a exaltação e extraordinária mobilização popular que o período revolucionário gerou, essa classe dominante logo se empenhou em repor o quadro de apatia política, refazer a censura como a verdadeira sintaxe do pensamento colectivo, “uma autêntica profilaxia do Estado que não visava apenas controlar mas criar formas de mentalidade adaptadas ao poder” (Cardoso Pires). Assim, com meio século de uma democracia que adquiriu todas as doenças da velhice sem ter sido propriamente jovem ou adulta, a ameaça vem de novo da tendência para instalação de novos fascismos, com a censura e a violência articuladas e legitimadas pelas mentiras, as ficções e os pavores, os quais, ainda que injustificados, conseguem criar esses estados de espírito que são realidades políticas e promovem a nossa infantilização e o abandono à tutela do Estado autocrático, que passa a determinar um horizonte que a todos nos amesquinha. Pelo que, num país em que tantas gerações nasceram no escuro e foram educadas para o medo, por falta de órgãos que fizessem as partes comunicar entre si, é doloroso assistir à forma como este permitiu que o devolvessem a essa menoridade, enchendo-se de alergias da consciência, e permitindo que uma raça de oportunistas excitasse os seus piores sentimentos, virando todos contra todos. Regressamos aos juízos retardados, somos dominados pela economia do ressentimento, por uma estrutura de conflito aberto, num todos contra todos, quando aquilo de que mais precisávamos era de um jornalismo que nos devolvesse algum discernimento, que se aplicasse nesse movimento de crítica impiedosa e agora, mais do que nunca, necessário, uma vez que as nossas cidades estão a transformar-se em cárceres ou labirintos dos quais perdemos a chave.
Na secção em que tive mais responsabilidades, a da cultura, foi isso o que procurámos fazer: impugnar o dirigismo cultural, a composição esclerótica de uma classe que se serve de adornos embusteiros para evitar por todos os meios a autocrítica e que se integrou, de forma servil, no esquema oportunista, procurando safar-se com as migalhas que eram sacudidas da grande mesa para o chão, de forma a obter a solicitude e o conformismo dessa fulanada entretida com os seus prestígios. Mas nunca ninguém teve grandes dúvidas sobre o que era preciso, sobre como o esforço para se erguer uma nova pátria deveria começar pelas redacções, financiadas através de uma lógica de taxação severa sobre as tais indústrias de manipulação das consciências e que canibalizaram, nas últimas duas décadas, toda a receita dos órgãos de informação. Seria preciso que voltassem às redacções aquelas miúdas e miúdos que eu vi darem a este jornal os melhores anos da sua vida, pondo em risco qualquer projecto de vida íntima, relações pessoais, familiares, e não para continuar a ser-lhes exigido o mesmo desgaste, a mesma profissão de fé arrasadora. Quer dizer, gostaria de ver as melhores mentes da minha geração reunidas num espaço imenso, a dilatar inefavelmente essa impressão que temos do mundo ao nosso redor e a ensinar a escrever e até a pensar este país com o seu regime ágrafo: jornalistas com a ossatura de escritores, de detectives, os tais vagabundos com o brio e a ambição desmesurada de irradiarem uma luz que motive uma sublevação extraordinária, lançando-se nessas viagens vertiginosas e pontuais ao mesmo tempo, treinando esse livro solvente com um estilo de desaforos e erros, um tom irrepetível.
É para isso que servem os jornais: para os erros únicos, aqueles que nos são próprios, que demarcam um tempo e um lugar, e sem os quais um país não cresce por si mesmo, mas vive sob a tutela de outros. O fim do i não é o fim de uma ilusão, mas serve para assinalar o quão longe estamos dela e como se perdeu essa velha artesania de redigir artigos para a imprensa que quisessem fazer mais do que vir dar alguma notícia. O importante era o foco, o pacto, a cumplicidade com o leitor. De outro modo damos com esses fósseis que nos vêm contar o mundo, e tudo nos sabe a ranço, tudo parece processado, enlatado, como essa prosa pretensamente objectiva com que nos desgastam, com as habituais fórmulas a que recorre toda a espécie de asnos solenes, esse modo simples, desnatado, de escrever, tocando os tópicos já exaustos, os refrões, as frases feitas, lugares-comuns e vulgaridades anexas que constituem o repertório destes badamecos e moços de recados que vão enchendo as redacções. Estas que restam apenas como fábricas de propaganda e nas quais esses grumetes acham que estão a fazer o seu trabalho porque enxertam elementos estatísticos, ou disputam detalhes nas leituras oficiais, mas, no fundo, exprimem ou adensam a confusão geral, a inércia a que fomos levados num deleite de autocontemplação, porém sempre com noções corrompidas e ociosas. Pois por mais dados, por muito que desafiem a narrativa oficial, ainda não inventaram uma linguagem própria, uma autonomia, a sua força clandestina, algo que possa contrariar essa praga dirigida que continua a operar na maioria dos cadernos, trabalhando para o efeito de salivação com os consumos, para impingir sempre novos produtos, mais algum profeta ou guru, o oportunista da hora. “O mundo está ensurdecido pela cadência”, notava Karl Kraus. “Estou convencido de que as coisas já nem sequer acontecem, antes continuando os clichés a trabalhar sozinhos. (…) A coisa está podre por obra da linguagem. O tempo já cheira mal de tanta frase feita.” E isto porque nos recusamos a viver com algum risco, num país aberto à crítica, que faça desta um ritual tenebroso e exigente, e não um mero vício formal, ficando-se pelo arranhar da ferida apenas para entreter o erro.
Se estamos condenados a um enredo que nos empurra para a frente sem descanso, Kraus lembra que “a fraude que se deixou enganar é a última anedota que ocorre a uma cultura desafinada”. E se nem somos capazes de buscar inspiração e nos reerguer a partir dos exemplos da nossa história recente, dos elementos mais combativos e que tanto fizeram nas redacções por evitar esta profanação do jornalismo, então faríamos bem em lembrar como “a fealdade do tempo presente tem efeitos retroactivos”. Assim, mesmo aqueles que procuram preservar os símbolos e a História, deverão entender que tudo acabará por escoar pelo mesmo ralo. É um imperativo, seja qual for a inclinação ideológica que se tenha, criar as condições para que surjam órgãos autónomos, projectos editoriais robustos, onde se possa ler todo o tipo de propostas de narração, de crónica, e não apenas esse comentarismo parasitário que vive de propagar aquela cadência esgotante. São precisas falhas de energia, espaços onde se possa recompor essa suspensão, ler aquela prosa com pólvora e que se vai salvando dos rigores quanto à vigilância do colesterol. A ideia seria deixar o talento em bruto, agarrado ao ímpeto, à urgência, como um astro embriagado a tentar queimar a página onde foi inscrito, e beneficiando com uma vista profunda sobre a catedral literária, e igualmente de uma boa distância face aos mármores oficiais, a essa sombra de tédio com que nos maçam aquelas traças que, em vez de luz desgarrada e própria, se concentram nas fontes de calor e luz que emitem as zonas de poder.
O jornalismo é uma prática exploratória, gémea das artes, não é uma zona fria, protocolar, mas deve estar disponível para ser repensada, para captar aquela música que só esses poucos que têm os ouvidos já viciados nas selvajarias literárias conseguem aproveitar. Quiseram fazer do jornalismo uma condição subserviente. Foi por isso que nos venderam os discursos do método, e a degradaram como uma mera indústria técnica. Ora, o jornalismo sempre dependeu da ficção, desse talento para gerar formas, traduzir e interpretar a realidade. Mas quiseram impor-nos a patranha da objectividade, como se todos pudéssemos concordar sobre o que é real. E agora que já ninguém opera dentro do mesmo quadro e com os mesmos factos, estão em apuros, porque não sabem restituir o sentido, criando uma linguagem que gere uma nova ficção coesa. E não o sabem fazer porque lhes repugnava a liberdade dos escritores, quiseram enxotá-los das redacções, mesmo o género da crónica foi inteiramente cedido ao bando de aves necrófagas que cercam o cadáver de cada dia. Ora, como bem sabemos, o escritor digno desse nome, neste país, nunca passou da condição de um herege, e nisso também se distingue daqueles que, hoje, são incessantemente alvo do panegírico das nossas páginas de cultura, o tipo de escribas que adaptam os géneros canónicos à prosa dominical que se lê nos jornais, e que, com as suas récitas morais, toma parte na grande missa que continua a apaziguar as tensões mais promissores que ameaçam as redes do poder.
Este tempo, que se abastardou nas formas de escapismo de um lazer que nos treina para a impotência e para a total ineptidão, em termos de convívio, de gerar focos conspirativos, este tempo continua à espera, buscando mal e nos lugares errados as metáforas atrozes que lhe façam sentir a sua verdadeira condição. O jornal i não fez tanto quanto podia ter feito, mas foi o único jornal que nos últimos anos se aproximou dessa condição experimental, com o seu tom desassombrado, nuns momentos mais irónico, noutros frívolo, mas esforçado, feito sem o peso de se achar o centro deste mundo ou de outro, sem o pedantismo que é típico dos nossos jornais tidos por órgãos de referência e que, na verdade, são precisamente os alvos abater no momento em que surjam órgãos de comunicação para nos falar de uma realidade que começará por soar como uma ficção hostil, desavergonhada, sobre o país que esteve à beira de um privatização de tal ordem que até os espíritos já só balbuciavam números, se algarismavam, incapazes de sustentar esse estremecimento que carregam em si as palavras.
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