Está bem, porra, falemos então desse cadáver na única altura em que parece estar quente: o Jornal de Letras, espécie de dinossauro com tamanho e atitude de pulga, e, por isso mesmo, tão fabulosamente adaptado às condições do meio, tendo sobrevivido por tempo demais (quarenta e cinco outonos, tanta folha amarelecida a bloquear as goteiras), e graças desde logo à sua irrelevância, tendo-se tornado nos últimos vinte, com aquelas varizes que já se lhes via na cara, uma espécie de boletim paroquial da cultura institucional, esbanjando o incenso da reverência, aquela ânsia sabuja de se pôr ao serviço, comerciar favores, oferecer recreio para o engodo publicitário, treinar o livro de estilo vassalo, cheio de mesuras, com aquela lengalenga untuosa. Ali estava uma instância de estágio essencial a qualquer carreira orientada para fazer o frete a torto e a direito, apontando ao Olimpo dos tarecos, numa escalada a afinar a língua pelo orifício de quem segue à frente, esse ritual incessante de quem vai sempre a favor da corrente e com a língua a remar. O destino da coisa estava há muito selado, e agora aquela agonia soa à falência da nossa funerária das letras, um sexto acto de uma peça arrastada, como convém aos espectáculos de fachada em que nada morre verdadeiramente — apenas muda de pasta ou de promotor. Nas últimas décadas, o JL desfizera-se inteiramente da função crítica, actuante, polémica, que o poderia ter mantido vivo, mas vivo, e não aí só a servir de realejo sempre com aquela modinha para compor o desarranjo em fundo. Preferiu o regime da mão estendida, bater com o pires em todas as colectas, ser a folha dos arranjinhos, da forma mais despudorada, e sem ao menos ter um capítulo de classificados para o mais proveitoso e desassombrado comércio da carne. Era o nosso jornal de cerimónias, onde as castas rameiras da cena cultural afogavam a madalena dando-se aquele chá de relva, coçando as costas umas das outras sob o pretexto da divulgação. Escrevia-se sempre com luvas: tudo era «notável», «imperdível», «inestimável» — adjectivação automática ao serviço de um consenso mole. O espaço para o dissenso, para a fricção, para a polémica, só lendo à lupa nas entrelinhas. Não faltava era superfície para anunciantes, para o exercício da crónica vaidosa, a entrevista obsequiosa, a promoção de eventos desses que provocam logo o bocejo ou, na melhor das hipóteses, a risota perante o desespero dos mesmos em comparecer diante dos funcionários de arquivos e bibliotecas, dos vigilantes de buracos com gavetas cheias de fichas ilegíveis e fungos, das bezerras mal mortas, dos algaliados arrastados daqui para além ao sabor dos humores de obscuros gabinetes, dos putos das C+S de Alcolhões ou Alcaguideche, enfiados num autocarro e despejados sempre que é necessário justificar despesas com os "nossos" agentes culturais. Era, enfim, um jornal para essas letras atarantadas, sem instinto ou urgência, sem unhas nem dentes, letras como dentaduras postiças, tretas, balelas, lérias, água de colónia feita de bichos da prata esmagados, uma ideia de cultura que apenas serve a reprodução dos tiques de uma manada complacente. E mereceu bem aquilo que lhe foi feito, como se desfizeram deste título entre outros, e o seu fim inscreve-se numa operação mais vasta e que merecia servir a um grande estudo de caso quanto ao Esquema, à disciplina para enredar tansos, uma manobra que, não por acaso, nunca vimos denunciada naquelas páginas, e que foi orquestrada com precisão por essa corporação-múmia que é a Impresa, onde nada é feito ao acaso. A pseudo-venda dos títulos à entidade fantasma Trust in News não passou de um jogo de espelhos, um estratagema para poupar a Impresa à vergonha do desmantelamento. A encenação permitiu-lhes amputar os membros menos apetecíveis daquele cabaz editorial sem deixar o cheiro a putrefacção colar-se aos títulos e negócios centrais do império Balsemão. Foi um descarte higiénico, mas não menos brutal por isso: cortou-se o tubo da ventilação ao JL e a outros títulos, uns de feição mais jornalística, outros exigindo mais do panetone publicitário, e nada se orientou por uma questão de princípios, mas por necessidade de fazer o abate longe de casa, para não ouvir o ganido, os balidos dos inocentes. O Balsemão dava muitas aulas de comunicação a estes cordeiros, mas o que teria interesse era ouvi-lo explanar sobre aspectos de gestão e cálculo quanto a possíveis danos reputacionais. Ficava mal na autobiografia e auto-hagiografia acabar com uma cena em que o grande fundador tinha o dedo no botão da maior incineradora de títulos de imprensa. Quanto ao JL, este não morrerá, não exactamente, pois tem de haver uma folheca de supermercado para as promoções na ala da "cultura standard", um andar modelo para servir de pastagem aos bonzos que se vão safando à margem do frenesi do matadouro e das nuvens de sucessivas desratizações. Alguma outra coisa igualmente bolorenta há-de surgir para colher e enxertar a publicidade institucional, os mil e um esquemas para distribuir as verbas autárquicas, para justificar as políticas áulicas que dão jeito nem que seja para calar uns e obter de outros a sua placidez conformista. Assim, o jornal não se fina, vai refinar-se, e daqui por uns tempos já aí andará outro panfleto com as fuças dos mesmos, essas colecções outono-e-tanas que entram e saem sempre na mesma, como é próprio dos pavões, com aquela histeria a encher os jardins onde não há crianças em número suficiente para afinar a pontaria e expor estes irritantes galináceos. Felizmente, é o fim da linha para o Vasconcelos, nome que sempre me pareceu bom para baptizarmos em sua honra um instrumento de cordas lassas ou uma doença nos tomates. Basta ir ler a última crónica do bicho, mais um suspiro abafado, e um silêncio cúmplice, a rezar e a ver se ainda o safam, se o balão de soro pinga ainda mais qualquer coisa. E se anda para aí a turma das carpideiras do costume, a lamentar o ponto a qu'isto chegou, estas a fungar-se todas e encher as mangas de ranho, isso já é um traço da natureza da cultura oficial, que, quando não mama, só lhe resta chorar.
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