É tão pouco o tempo que temos
talvez por isso saiba a grogue,
a bebida dos condenados,
levamos um gole o mais longe que podemos,
imaginando como seria bom provar ainda
alguma outra coisa, um travo
que abalasse a existência, de tal modo
que a memória nos servisse de alimento
como uma eternidade dilatando
os poucos dias que nos restam,
poder despedir-se sentindo a realidade
coincidir uma última vez consigo mesma,
as árvores a respiração a gravidade
uma banheira cheia de água das chuvas
esses sítios assombrados onde os anjos
deixam as suas garatujas nas paredes
e se drogam e depois se desfazem em pó,
nada sabe melhor que esses adeuses
retendo o nome das coisas pouco antes
deste perder o sentido na nossa boca,
de tantos gritos que se engole
ao longo de uma vida
tudo parece alheado, e então
às vezes olhas para cima e o céu nocturno
deixa-te a sensação de que todo esse brilho
toda essa dispersão talvez seja
uma lembrança, os miolos espalhados
de um deus que se suicidou,
toda essa luz capturada, esses ecos
sem saída, e de algum modo é possível
que seja este o efeito pretendido
olhar o mundo e a própria infância
como uma civilização perdida,
e que talvez só por isso nos cause
uma tão grande comoção.
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