terça-feira, maio 21, 2024


Ninguém teria o cuidado de juntar
o pó do que fomos se houvesse tempo,
se as mãos pudessem resistir
depois do tempo se tornar outra doença,
passo a língua entre o vazio e estes mesmos 
dentes, cada frase cede diante da dispersão 
e à medida que a voz se perde.
A memória de nada nos serve,
já não é capaz daquela selvagem
suspensão, de segurar a corrente ou a luz
nesse gesto vago com que nos apropriávamos 
de tudo, arrastando os astros
reflectidos na água.
Estamos fracos para o ritmo e as visões 
que nos davam a posse momentânea 
e o gozo deste mundo.
Hoje o absurdo prevalece, o idioma
mal se toca, ou roça as partes sensíveis
da matéria, e chegam a passar-se anos
sem que uma só frase venha
respirar à superfície, tome parte
desse rumor que se ouve à flor
dos caminhos.
Resta-nos abrir fossos, salgar o chão 
dizer pouco, o mais breve rasto,
e pôr tudo num resto, fazer a guerra
num detalhe,
assim achamos os venenos mais íntimos
dos homens,
as sombras distraem-se em outras
latitudes, mas deste lado tudo parece 
quebrado, frio.
Se outros lavam a boca, nós 
preferimo-las sujas, o gosto revoltante
de um beijo e assim
voltamos ao embalo e à espuma
dos dias que nos querem,
sabão, cerveja, mar,
essa canção que trazemos dentro
como ossos e sangue,
buscando o infinito na carne.
É um modo de dizer, de o repetir
de rasgar os últimos sinais e decorar
a ausência, dispor os versos como ruínas
e poeira junto dessas plantas secas
firmando a névoa, e de invocar o desejo
quando este se tornou a mais rara
e a mais perturbadora das distâncias.


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