segunda-feira, maio 08, 2023


Faço por valerem as horas que vou tendo
considerando o preço do quarto,
pago à noite esta composição de visões frias
sensações trespassadas, a pertença ao vazio,
em tempos gastei mais noutros corpos 
até se tornar claro como preferia
os intervalos, a ausência, detalhes
presos na dura luz das coisas,
essas evidências estranhas que brilham
à tona do silêncio. Podia também ter escolhido 
passar horas a atirar pedras ao mar,
ou escrever novelas dessas que fingem
mal ou ainda pior que a literatura que fazem
não é só outro modo de serem notados
entre toda esta monstruosidade implacável.
Prefiro falar-te baixo enquanto vou escrevendo,
insistindo nos velhos signos
como se caminha pelas ruas de uma cidade frágil,
enchendo de minúcias estas reportagens sobrenaturais.
Num envelope trago os grãos de alguma
matéria discreta e explosiva que raspei
das raras páginas onde vibram ecos
de um espaço e de um tempo abolidos,
essa fundura de um sangue contrário,
as estrelas baixas que se reflectem na língua,
e os dedos tremem escuros
tornam-se antigos, o nosso rosto
ganha então uma força inexplicável 
refeito entre expressões retiradas da água,
a pacatez anfíbia com que repassamos
os lugares dos crimes,
ali onde os nossos hábitos se educaram,
adquirindo a regularidade absurda
de uma crença. A lâmpada eléctrica aqui
tem um zumbido característico,
espécie de sol com um ânimo de mosca,
escava comigo a noite para encontrarmos
juntos os ossos de um vulto familiar
metidos dentro de uma caixa de música.


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