domingo, abril 02, 2023


Eu não gostaria de estar entre os sobreviventes,
seria difícil passar com a língua e dar-me
conta de que o passado se tornou
mais exuberante do que tudo o que temos,
e até do que as nossas melhores esperanças,
e que há uma série de frases
que deixaram de ser aceitáveis,
coisas que gostávamos ainda de dizer,
descrições onde seria bom perder-se,
mas em voz alta, passando-as de mão em mão
como amuletos esculpidos ao longo de uma vida,
tanto como o gosto de alimentos, frutos
que não haverá mais forma
de nos virem a encher a boca. E depois
há as conversas que retomamos a sós,
no esforço de pôr um trapo na boca do silêncio,
sabendo agora o alcance de todo este desastre.
Escrevemos com um prego numa tábua 
uma linha que não mostraríamos a ninguém,
alguma referência bastante remota,
esse verbo num idioma raro, bárbaro 
e que não secou ainda, está fresco,
com sombras a toda a volta.
Se não temos com o que ocupar os sentidos,
lá vem, impõe-nos um estremeção,
e o que se dava até ali a ler
de súbito pode ouvir-se, respira junto de nós.
Um parafuso cai nas lajes às escuras,
o espaço cerca-te, o som estilhaça-se
e logo reúne forças movendo-se do invisível
para a tua imaginação, e quase te morde.
Procuras uma ponta, sendo claro
que a realidade para isto conta muito pouco.
Nunca se fala dessa loucura desvairada
que nos absorve em alguns momentos,
da sumptuosa carcaça que a ti mesmo disputas,
e de como o maior perigo é não distinguir
já o passado e a memória do resto,
ou a forma como um coração ausente
nos arrebata o sangue
e o ergue até a uma sensação infinita
mas que já não diz respeito a este mundo.


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