segunda-feira, março 20, 2023


Ouve-se na forma como se esforça
por limpar a garganta,
essa estranha comichão impossível
de engolir, e tão difícil também de explicar.
Não há remorso que não se torne
uma espécie de música,
e o bebedor sabe do rancor que leva
um afogado a beber o mar inteiro.
Outros depois de nós talvez oiçam o canto
que tocou o fundo do tempo como uma garrafa
no leito de um oceano incapaz de o conter,
assim damos mais atenção ao movimento
dos que partem, e em certos seres pressente-se
muito cedo a despedida, o desgosto
das suas vidas como uma eterna demora,
dedicam-se a decorar o inferno,
desenhando arabescos, o contorno de pétalas,
pisam um solo mais fragrante, 
começam a soar um pouco como o vento,
retirando do bolso um lenço para colher
uma imagem agonizante, ou algum livro
de pássaros para as anotações finais:
o que resta do voo de outrora, junto
com a dose de delírio que se impõe 
àquele que recorda,
trocando o receio de então 
pelo exagero e a sofreguidão que estão apenas
ao alcance de quem foi já um pouco
para além da sua vida.
Estes homens que exigiram a obsessão
e hoje só falam a sua língua, como aranhas
tentando prender algo que deixou de existir
ou que a imaginação lançou para fora
da realidade. Resta-lhes o desejo, e este
como se sabe, consegue ser a pior
das nossas armadilhas.


Sem comentários: