domingo, fevereiro 26, 2023



Podemos dizer as mesmas coisas uma
vez mais e outra enquanto perdem o sabor,
é o que te pedem: que fales, escrevas
o teu nome e te expliques
nessas linhas frias e cortadas
onde lemos "o perfil de anjos inviáveis",
a razão pouco clara, uma água com reflexos
bastante antigos, já desfeitos,
murmúrios à beira de um abismo.
Procuramos restituir aquele ambiente
de narrativa, procurar a voz
nos lugares de antes,
dedicamo-nos os gestos que outrora
fizeram para nós mais sentido.
Pegas nessa cabeça jovem que tiveste
e voltas a colocá-la no teu corpo 
cortada uma e outra vez por bons motivos,
e abres os olhos, voltas a falar
e cada palavra te sabe ao princípio das coisas.
Não sabíamos nada de música, só a vontade.
Como pudemos então dançar e este
nos parecia outro mundo.
O teu vestido azul, o gosto de te carregar
nos braços fazendo-me de forte,
e se a sede me fizesse agora beber
aquela mesma água do chão, hoje eu
quereria sorver o teu reflexo, os passos,
lembrar como a vida tinha pouco cuidado,
como ela foi antes de ser preciso esconder-se.
Os melros estão entre as poucas coisas
que se dão a ouvir como dantes.
Os nomes estão exaustos, a voz recolhe
uma parecença sombria, e depois acaba
antes de começar. O que sobra
já não tem semelhança com nada,
as comparações doem-nos, e o idioma
torna-se inútil sem o desejo de apontar ou
de tocar, como também não apetece
mostrar ou trazer à boca.
E fica claro então que não se pode
fazer com as palavras isto
que vamos fazendo ao mundo em silêncio.


Sem comentários: