quarta-feira, fevereiro 08, 2023



Os estorninhos comeram-nos as cerejas 
que cresciam todo o ano no quarto.
Até ali vestíamo-nos, enchíamos os bolsos
antes que o sol pudesse saber e
íamos a vincar os caminhos com caroços,
a ver se o mundo desaparecia.
Nesse ano sentei-me ao lado de Em.,
que deixava que a copiasse, não
as respostas, mas a dor, a eternidade,
as sombras quietas sustendo a respiração,
e como a paisagem a ouvia, a mim
só a metade me chegava, 
o resto cabia aos anjos virem buscar.
Punha ao lado umas das outras as peças
mais estranhas, e riam-se assim.
Hoje retiraram-se para outras latitudes.
As estações estão já descosidas,
botões nas gavetas, nos bolsos umas
das outras. Talvez ainda se ria.
Já não encontro a cicatriz que me
fez, não me chega a velha comichão,
o resíduo que o sentido das coisas deixava
nas mãos. Cubro a mesa dela com o casaco.
Faço o que posso, imito-lhe a estranheza
a ver se me toca o mesmo encanto.


Sem comentários: