sexta-feira, janeiro 27, 2023

Rui Caeiro, um retrato


[texto lido ontem, numa sessão evocativa junto de familiares e amigos do Rui]


Acabamos de editar na Língua Morta um livro de que me sinto particularmente orgulhoso por trazê-lo para o lado de cá, desde logo porque teve um percurso atribulado antes de chegar a nós, salvando-se pelo caminho de se tornar num desses modos que uns têm de se aproveitarem do entusiasmo de outros.

Gostaria de começar por vos ler uns aforismos que, não houvesse hoje a necessidade de nos encontrarmos para disfarçar a falta que o Rui nos tem feito, o mais certo é que estivesse a partilhá-los com ele, porque foi isso o que sempre nos ligou mais depressa – a partilha de entusiasmos –, sendo certo também que ele já os terá lido em tempos, aguardando a ocasião de nos juntarmos à mesma mesa para ouvirmos as vozes de Antonio Porchia, este poeta vigorosíssimo, que, de cada vez que abria a boca, não precisava de respirar duas vezes para ir até ao fim, dizer tudo, e alguém que, como tenho vindo a descobrir por estes dias, tanta coisa tem em comum com o Rui.

“Quando o superficial me cansa, cansa-me tanto, que para descansar necessito de um abismo.”

“Não acredito nas excepções. Porque acredito que de um só não há nada. Nem a solidão.”

“Sim, isso é o bem: perdoar o mal. Não há outro bem.”

“Vive-se com a esperança de chegar a ser uma lembrança.”

“A verdade tem muito poucos amigos e os muito poucos amigos que tem são suicidas.”

Por isso é tão importante a arte de se saber contar a verdade, como é importante saber fazer esses anúncios desoladores, dar as notícias piores e que assinalam momentos de mudança, tantas vezes tão difíceis de engolir. Eu que tenho tão má memória, ainda me lembro do momento em que me foi dito, ao telefone, pelo filho do Rui que ele morrera. Tinha acabado de acordar, tinha duas chamadas não atendidas. O Rui estava internado, e esse desfecho, ainda que talvez um tanto antecipado, não deveria ter constituído uma grande surpresa, mas foi. Ainda hoje permanece assim, ainda me espanta que o Rui tenha morrido. A sua inteligência faz-me falta, aquela sua paciência para com a vida. Ele sabia, como Porchia, que “o homem não vai a lado nenhum, mas que tudo vem ao homem, como o amanhã”. Ele sabia também que “vivemos de lembranças, de momentos”, e como é isso o que realmente nos alimenta. Tinha essa sagacidade simples de os procurar, de não se fazer de desinteressado, de não imitar os modos frios, o regime dessa gente indiferente a tudo, e que antecipa sem o saber o seu próprio fantasma ou cadáver. E, uma vez mais recorrendo às palavras de Porchia, ele entendia que “para conviver é preciso ter-se um estado de consciência”, e que essa é a mais bela das descobertas, a noção de que viver é conviver. “Viver é fazer viver”, disse Porchia numa das poucas entrevistas que deu. “O homem não retrocede. Pode haver até um suicídio da humanidade, mas nunca um retrocesso.”

Nunca vi no Rui ou nos seus gestos qualquer resquício dessa resina delirante que fica dos sonhos que não sabem como cumprir-se neste mundo. Pareceu-me sempre que a sua afável e inquietante grandeza vinha precisamente de ter sabido rejeitar o desejo de que a vida fosse outra coisa, ainda que se esforçasse para que as coisas fossem um pouco melhores. Ele sabia como um pouco já faz uma grande diferença. E, de resto, nunca quis senão viver modestamente, rodeado dos gatos e dos tantos livros que acumulava obsessivamente, como se a eternidade fosse um período incerto de grande aborrecimento, e houvesse que preencher a sua biblioteca para os eventuais séculos até que também esta se convencesse a procurar um fim. Como ele escreveu num desses contos que tinham sempre o balanço próprio das parábolas: “um paraíso nunca é como a gente o sonha. Até porque a gente, ao sonhar, limita-se a sonhar parvamente a perfeição. E um paraíso não é perfeição nenhuma, estou em crer. Um paraíso é tão-só a sua própria realidade, frágil e nua, desarmante.”

O Rui dizia-nos as coisas como elas são, sem as alterar arbitrariamente, praticando um realismo pacato, mas de profundidade abissal. Assim, as páginas que nos deixou, sendo aparentemente leves e elusivas, na realidade oferecem-se a uma forma de convivência prolongada e acabam por revelar-se bem mais inquietantes do que as ruidosas ostentações subversivas daqueles poetas que se esforçam ridiculamente para nos fazer crer que sabem alguma coisa que transformaria as nossas vidas se também o soubéssemos. E, no entanto, são estes os que andam sempre a aborrecer-nos, a perseguir os leitores sempre com novas fórmulas, com aquele ar sarnoso dos ressentidos.

Para o Rui, um livro era um modo de dois amigos se procurarem nas horas em que é mais difícil superar a solidão. Nele qualquer indício de vaidade era um modo de querer ser-nos íntimo, perpetuar-se numa lembrança mais funda. Não havia nele esse entusiasmo de derrotar o outro, assumir sobre ele algum tipo de influência amesquinhante como parece hoje ser a intenção de tantos criadores, e poderia ter roubado com melhor proveito este aforismo de Porchia: “Acreditando termos algum valor, prejudicamo-nos.” O valor que atribuía às suas coisas parecia evidenciar-se apenas na medida em que pudesse transmitir-se sem cobrar grande reconhecimento por eles. A sua generosidade estendia-se a uma preocupação com o desperdício que dinamiza tanta da literatura que entre nós se escreve, essa superficialidade da linguagem que se mascara de uma propensão para o barroco. Praticava um verso distendido, uma prosa regular e com esse alcance espirituoso da melhor oralidade, num registo que parecia entregue ao ritmo do marchar, como se o lêssemos e ele fosse ao nosso lado, destilando a sua sabedoria que era, antes de tudo, muitíssimo paciente, desde logo com quem o ouvia, sem antecipar um desfecho, engendrando frases que se expandiam com a nossa própria odisseia pessoal. E é este o segredo da longevidade de uma obra que está ainda numa espécie de infância, pois o Rui será lido daqui a muito tempo, aproveitando-se do balanço também dos dias que virão. E tenho tanta confiança nisto por reconhecer nela o perdurável encanto de uma escrita que tem o cuidado de não revelar imediatamente tudo, não para fazer suspense, mas para realmente poder fazer-nos companhia. E isto sempre num tom que indicia proximidade com o leitor – desde logo porque o Rui nunca teve essa veleidade tão comum no nosso tempo de imaginar que outros que não os seus amigos pudessem prestar uma atenção mais funda às coisas que escrevia. Ora, uma parte decisiva do gozo enleante de o ler reside na estima que se cria entre nós e ele, a qual nos dá confiança para continuar a remexer nos seus textos e livros sabendo que neles nos aguardam outras revelações para as quais antes não estávamos ainda disponíveis. 

Como escreveu Porchia: “Ajudar-te-ei a vir se vieres e a não vir se não vieres.”

Num momento de dúvida, alguém abre um livro do Rui ao acaso — que no fundo não é um acaso — e recebe um conselho muitas vezes sem se aperceber. Até porque “quem diz a verdade, quase não diz nada”, assegura Porchia. Há, por isso, uma grande subtileza nesta forma de se dar aguardando a ocasião certa, e o Rui, que sempre foi um mestre de alusão e reticência, sabia unir uma visão desiludida e que roçava até, às vezes, a crueza a uma dolorosa e indulgente compreensão humana. A mim, foi-me ensinando, com grande custo, a desconfiar amavelmente, a aceitar o lado de promessa que nos é feito pela falha do outro, na medida em que esta também reflecte a nossa, e nos dá margem para nos reconhecermos mais profundamente, o que só é possível num reflexo que, ao contrário daquele que nos oferece o espelho, não repete sucessiva e imediatamente nem acolhe cada um dos nossos gestos. Os reflexos mais fundos são os que surgem desfasados, e podem, também por isso, oferecer-nos algum alento nos momentos piores. E sirvo-me de outra das vozes de Porchia: “Sim, isto está mal. Mas esteve bem. E agora não compreendo como pôde estar bem. E agora não compreendo como pode estar mal.”

É esta compreensão o que se nos oferece mesmo quando o encontro entre nós e o outro decide as nossas vidas, como acontece no amor, e só muitos poucos sabem isto. O Rui sabia-o, como o amor se faz de uma convicção profunda que se exprime através de uma longa espera:

Porque
amar é
meter na boca uma pedra
e aguardar
o despertar das papilas
o seu recreio
e abandono
o seu desvario

e
também é
a gente perguntar-se
o que fazer
com as sobras
a saliva
os sonhos enregelados
a pedra

O amor é assim essa disciplina dos que ficam de pedra e cal, dos que resistem à própria vida, e estão lá na altura em que a morte se põe a rondar. "Diante da morte o importante é estar", vincava ele logo entre as primeiras coisas que nos disse.

O Rui tinha essa firmeza, tinha “no rosto o sorriso invencível dos/ perdedores”.

No amor está-se, evidentemente, para se perder, para sentir o fio puxar-nos até ao fim, com uma dor que não abdica de si mesma. O amor profundo adianta-se e antecipa todos os desfechos, mas depois também se recusa a livrar-se do luto. Mesmo se já não há nada a fazer, na lembrança ainda há uma força que transforma e cria, pois sente em si tudo o que não existiria de outro modo, tudo o que pertence ao outro. Ou, como escreve Porchia: “A perda de uma coisa afecta-nos até não a perdermos toda.”

Da mesma forma, poderíamos falar desse ancestral encanto de se olhar o céu de noite. Esse assombro diante da imensidade do que nos chega desde distâncias absurdas face às nossas medidas, mas que não deixa de se recolher no nosso olhar, como um sinal de presença insistente e quase fervoroso. “Sim, são milhões de estrelas. E milhões de estrelas são dois olhos que as fitam.”

Este abissal desequilíbrio em que a vida nos coloca face aos elementos que nos cercam já nos obriga a encarar a impossibilidade, a morte, o nada. Mas também a não apagar esta hipótese improvável de haver algo na experiência humana de tal modo integrador que, de bom grado, suportamos essa ferida. E nunca como quando entregamos uma flor como um gesto dedicado a alguém que já não a pode receber das nossas mãos sentimos tão fundo a perplexidade deste aforismo de Porchia: “A flor que tens nas tuas mãos nasceu hoje e já tem a tua idade.”

Outra das vozes diz: “Cheguei a um passo de tudo. E aqui fico, longe de tudo, um passo.”
De algum modo, é esta a distância que é necessário percorrer, e sempre foi isso o que sentimos como a maior traição: não que alguém não tenha conseguido alcançar aquilo a que se propôs, mas que nem tenha dado um passo nesse sentido. Quando o Rui morreu alguns não quiseram ou não puderam dar esse passo. Quatro anos depois estamos ainda mais desfalcados. E o que nos diz Porchia ou diria o Rui se pudesse: “Percebemos o vazio, enchendo-o.”

O Rui nunca me ensinou outra coisa que não passasse por isto, e, às vezes quando descubro um livro ou um autor que causa em mim aquela forma de admiração radiante, ou que me perturba realmente, me desafia a ir a lugares onde me recusaria a ir a sós, seguindo sugestões que raiam o pavor, tenho ainda a tentação de lhe ligar. “Quando me encontro com alguma ideia que não é deste mundo”, escreve Porchia, “sinto como se se dilatasse este mundo.” Quando isto me acontece sinto que o Rui teria gosto em andar por ali comigo. Outras vezes apetece-me ligar-lhe apenas por desgosto com a vida, porque: “Nada não é somente nada. É também a nossa prisão.”

Este país tem sido muitas vezes essa prisão, e o pior é a forma como vamos sendo privados da companhia daqueles que nos vêm com os seus planos mirabolantes e fazem alguma coisa por essa forma de evasão ao nível do imaginário que passa por criar uma espécie de ritmo contagiante e uma visão que nos aguente e que possa ser transmitida entre as celas como um fôlego novo e alentador. Invariavelmente, acabamos por nos ver de roda daquela frase de Alexandre Herculano: “Este país dá vontade de morrer.” O Rui era um bom vizinho para se ter nesta choldra, pois tinha sempre histórias, bons motivos para despistar esses instantes em nós que, por uma certa falta de carácter, se mostram dispostos a atirar a vida à linha por lhes faltar a experiência de sentir a morte a revirar-lhes os bolsos ou a compor-lhes a gola do casaco: “Que triste figura fazes assim… Imagina que, ao ar de espanto que porias se te visitasse, ainda deixasses aos que te descobrissem o corpo esse ar de desmazelo. Talvez pensassem que já estavas no fio, e que não se perdeu grande coisa.” É bom ensaiar-se assim, e ouvir da morte esses avisos que noutros tempos se ouviu de uma mãe. 

Provando o que comecei por vos dizer, que tanto há que aproxima um e outro, deixem-me ler-vos um pedaço de um texto que Roberto Juarroz (poeta que eu e o Rui traduzimos e publicámos juntos) escreveu sobre ele, depois da sua morte: “Possuía a rara arte da atenção inusitada e crescente, de uma atenção que parecia uma presença quase física. Quem com ele estava sentia, quando falava, que cada palavra se tornava profunda pela sua atenção ilimitada. A sua forma de escutar parecia criar a profundidade em seus acompanhantes. E quando ele falava, tínhamos a sensação de que o fazia já ‘desde o outro lado’, que por outra parte se tornava então infinitamente próximo, muito mais do que deste lado. À medida que avançavam sem nos darmos conta as horas das frias madrugadas de Buenos Aires, os seus pequenos olhos eram como dois focos cada vez mais despertos e brilhantes. Quiçá ali tenha nascido a minha suspeita de que a eternidade poderia consistir em ficarmos detidos ou presos num grande pensamento, pensando-o para sempre, e que morrer não seria mais do que o último esforço da atenção, o abandono dos outros pensamentos, para concentrar-se num só, definitivo. E penso que ali também nascera aquela sensação, recolhida em alguns dos meus livros, de que pensar num homem assemelha-se a salvá-lo.”

E, levando em conta o que acabei de ler, parece-me que é importante aquilo que aqui estamos hoje a fazer.


 

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