sexta-feira, janeiro 27, 2023


Condenados de antemão por crimes tolos
desses para ilustrar um argumento, 
por gabarolice, para fazer um desenho no ar, 
aligeirar o fastio dos amigos
e dormirmos depois pelos telhados
com as estrelas a tatuar-nos as costas,
em lugar disso, damos com a vida amarrada 
presa pelo tornozelo à cama,
só acontecimentos derramados,
flores murchas num vaso
a ouvir o luar pingar do quadro
que já vinha com a moldura.
Isto não tem frente, e nem focinho
ou dentes, se falamos na guerra,
se nos defendemos tomam-nos por loucos,
se montamos algum motim ainda pior.
Como luzes riscando o escuro nas trincheiras,
fumamos, escavamos, decorando o buraco,
com os cadernos tomados pelas ervas
da marginália, grilos a roer os apontamentos,
lavamos os olhos nestas poças,
temos ainda uma estrela diluída
num copo de água, a espinha de algum raio
 a servir de lâmpada, bebendo um gole
tentamos tirar este gosto, esse velho nó
na língua. O receio de ter perdido a mão
fez-me catar migalhas, substitutos do tabaco, 
redigir sobre a ordem dos sinais noutro corpo,
o suave cheiro a sabão, às vezes o sabor
dos mirtilos, essas provocações que ficam
de uma época para outra,
e ainda o instinto de sobrevivência
que se acha em algumas lembranças,
aquela sílaba que se encanta e arrasta,
que deixa um dedo pousado sobre o lábio
de um momento, impressões
arrancadas com uma precisão delirante 
provocando o fascínio das tempestades,
tão longe disto tudo que a chuva
que depois cai
parece até falar em outras línguas.


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