quarta-feira, agosto 24, 2022


Serve-me bem uma vida escrita no pó,
posso ficar aí, num canto e com um prato,
algumas torradas e aguardente, a ler
para os vizinhos: disparates, listas, nomes,
a baloiçar-me numa intriga qualquer.
Estamos cansados o meu anjo fedido e eu
do desacerto em que cada gesto iguala
a força fútil de um insecto.
A carne não suporta mais palavras,
nada já se reconhece em si mesmo,
cada reflexo desfere outro golpe,
a lua caiu já roída pelos vermes,
as flores morrem nalgum vestido,
os sentimentos desbotam e eu prefiro
ser um historiador de coisas sem importância,
aproveitar o embalo de detalhes inconscientes, 
esta árvore que se rega em segredo,
o caderno aberto junto ao rumor do cesto de frutas,
o tempo radiografado sobre a mesa,
e quando se pode separar em tantos momentos 
um desastre ele exibe uma delicadeza invulgar, 
como este inferno que nos protege,
o grato convívio com alguns monstros,
como para lá do portão que não permite 
regresso,  as noites balouçam
com tudo o que ouvem, há um resíduo
que nos fica na pele, dos sonhos as difíceis 
semelhanças, analogias rudes um guizo
e acordo todo mordido pelas pulgas-do-mar,
bebo o copo de água à cabeceira tremida
suja cheia de escamas, é terrível e eu gosto
sabe-me às entranhas do universo,
não me deito nunca sem antes
ligar o gravador, deixar essa sonda
mergulhar nas zonas mais frias, na orla do real
e oiço depois o ruído e as vozes os delírios,
e as sombras espalhadas pelo quarto cedem 
como flores, revestindo tudo, e passeio
espantado de roupão, descalço, sorvendo café
de uma chávena lascada à espera que voltes.


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