terça-feira, agosto 09, 2022


Fere-te o negro espinho
onde o fio da tua sombra ficou preso,
e ali sentado em silêncio o teu último reflexo,
quase imóvel entre imagens trocando
o espanto entre si, que radiante cadáver
recorta diante de um copo de vinho.
Vamos perdendo o uso das mãos,
a ligeireza dos gestos,
mas antes que não haja mais gosto
para os nomes que nos sobem à boca,
relembramos aquele toque da língua
nos dentes, como se rasga a carne dos sons
tornando o mundo tão próximo,
depois aguardamos que a noite nos devolva
o suave hálito do sonho que vem pôr as coisas
em ordem, logo sopra uma brisa grega e
na varanda do quarto um canário insiste
em roer a argola e depois a pata
até libertar-se. Há um sentido de aventura,
um desejo de perseguição, um respiro 
que segreda até nos tornar loucos,
mas a vida vai-se tornando fria,
de tal modo que só debaixo de água
e sob essa força narrativa imensa
o rumor reconhece a sua origem,
São tantos os que se unem no leito
e ali dançam de olhos fechados. Talvez hoje
o mar tenha outra coisa a dizer-nos,
outro modo de desdobrar a vista
e beber a pérola da boca dos afogados.
A garrafa liga-te à terra,
com cada passo molha as casas
pelos joelhos, e, no balanço dos seus reflexos,
as árvores parecem-se com corais.
Passam-se dias enquanto fazes uma lista
de tudo o que tocou o fundo antes de ti,
esses objectos cuja forma e peso
desenharam as tuas mãos.
É quando tudo se mostra frágil
que as coisas mais buscam
um modo de ferir-nos.
A rosa parece-se com um punhal,
a natureza apresenta-se em armas,
os frutos trabalham novos venenos,
só então chegas à intimidade
com a devastação em redor, o sem sentido, 
e pedes uma luz que acabe com isto,
um sol que nos dissolva 
quando sentirmos o anzol do infinito
a rasgar-nos a boca.


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