sexta-feira, maio 06, 2022


Tenho saudades da cocaína, de outras coisas
que nunca provei, do tempo em que éramos
desconhecidos, de tudo o que tinha então
para te contar, quando estavas sempre
entusiasmada. Quero voltar à piscina pequena,
aos teus pés na água, ao grande relógio
onde o teu pai fez um ninho para os pássaros.
Quando só pudermos ler o mundo com a ajuda
de um isqueiro, talvez tudo nos volte a parecer
estranho, comovente. Fico aqui a olhar
para os danos, a tentar lembrar-me da doçura
da vida na terra... É tarde. Agora já não temos
de contar o dinheiro miúdo das horas,
a paragem de tudo ainda nos dói nos ossos,
de tão súbita, vamos polindo as peças,
reavendo o tabuleiro à vegetação,
contemplando as ruínas, à mercê de ecos,
dos delírios de uma guerra de significados.
De todos os ecrãs só ficou o brilho distante
das estrelas, o desfilar de constelações.
Cada um tem o seu caderno, buscamos
restituir algo, um pouco de ordem,
eu copio esses minúsculos insectos
cujas carapaças de guerreiros bárbaros
e as asas de vidro lembram os aspectos
íntimos das epopeias, o engrimanco confuso
do universo. Demasiadas chaves, gazuas,
mas as fechaduras vão todas dar ao mesmo,
um vazio a perder de vista, uma coisa e outra
e outra, e eu oiço-me a tilintar por aí,
ao longo do muro do tempo.
Daquilo que fui já só conservo as cinzas.
Todas as receitas, todas as técnicas soçobraram.
Apenas a memória nos serve por momentos
uma piedosa alucinação. A vagabundagem é mais
através dela, de um acaso que a faça vibrar,
trazer alguma carcaça maior à superfície.
Tudo é capricho, daí nasce o rigor que nos resta.
O espaço contorce-se, contornamos ilhas desertas,
paisagens sepultas, lugares onde o abandono se ri
de tudo o que fizemos. Dormimos no quarto
de Van Gogh, onde tudo é tão nítido,
lúcido e delirante. Eis a herança do último
dos últimos, esta posse infinita do mundo,
quando a história pesa inteiramente sobre um ser
que só pensa em ver-se livre do tempo.

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