quinta-feira, fevereiro 17, 2022


Vivemos distraídos na antiguidade,
e a casa é um velho projecto a meio
com um recital de flores secas pelos cantos
onde devoramos a ausência um do outro.
Temos as horas trocadas, como bilhetes,
enigmas perpétuos, algum nome transcrito,
a flecha levantada de um sonho. Acordo
e bebo do copo que deixou o gole frio
do café que teve nos lábios. Na bancada
o garfo sujo e um gafanhoto na borda do prato,
coisas assim, num estranho e doce abandono,
sugerem instrumentos de medição
de outras épocas, e talvez voltem a ser úteis
se o mundo acabar. Por agora aguardamos,
e já raramente mudamos os lençóis,
por preguiça, porque o cheiro ajuda.
Junto ao espelho respira um outro rosto,
a lâmpada balança, as sombras bailam
e como um rádio soa a "suave soma de sons
em eco", os objectos sujeitos a essa melodia
do desgaste, com os dias para trás e para diante,
nesta escala mínima em que a persigo
atento a ínfimas variações, tudo matéria
de estudo, até que de um vestígio qualquer
possa arrancar o som do grilo que cantava
no meio da infância dela.

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