Ultimamente, isto: as partes do que só pousa
contra as margens, o fôlego que tanto sonhas
e se recusa a ser escrito, nem por mais rasos
que cultives os nomes te oferece um vislumbre
quanto mais deixar-se apanhar vivo
mas se te queres atravessado do talento
de tudo quanto neste mundo ainda
se extingue a tempo
e nos serve a sua rara medida, há um preço,
a virtude não se entrega sem outras dores
a própria cabeça que tomamos nas mãos
vem aos tombos, com o seu peso variável
e os últimos cabelos azuis caem
num tom de fria instrução: deves servir-te
da imagem como um sal, em vernáculo,
quando te deténs ao lume a rever a receita
a ver se enganas as sombras e o estômago,
e logo começas a vê-lo em luta nas águas,
e gritas que aperte aqui, desamarre ali,
que mantenha o arpão erguido,
e tão de pronto passas de grumete a capitão:
ouve-o, toma-lhe a cauda nas mãos,
e do tanto que puxes, mais te arraste
e fira bem fundo,
deixa que te enterre na carne algumas escamas,
a porra do peixe arrastando a sua lenda
há-de deixar por fim algum sangue
à superfície destas páginas,
até que se encerre de vez o mais rude,
o mais genial capítulo das nossas vidas,
depois regressaremos a nado
já só com a sede que nos foi guiando
quando do mar não entendíamos mais nada.
Como é próprio nos delirantes, não contávamos,
fomos apanhados de surpresa. E agora?
O osso partido não é grave. Mas claro,
ainda vamos coxear por uns tempos.
Quanto aos tremores, são um mal comum,
mas depois passam-se uns anos,
os nervos acalmam, a luz na garrafa
vai apurando as voltas, vai-te tirando os pontos,
descose um fruto, alarga o seu gosto à desordem
como um pássaro a afiar-se nalgum bolso fundo
entre a natureza íntima das coisas que guardas
como esse pote que ferve lento e nos abre
cada manhã as divisões da casa:
sopra assim os dentes da gramática
na ruína de canteiros,
toca a corda e ouve da roupa
o murmúrio sem costuras que soará
como se fora o das velas, e vamos lá de novo tu e eu
por estações abandonadas à lua e às moscas
com a morte vigiando para que nada lhe escape.
E se os quartos ainda nos abanam como as velhas cabines,
o vento tem aqui um buraco onde dormir,
e um trovão da tempestade em que se sumiu
vez por outra vem e faz a barba na bacia.
O ferro geme, os lençóis têm febre,
misturamos o nosso reflexo com terra e cuspo,
para vê-lo rasgar um último sorriso.
Discutimos ainda em que foi que falhámos:
podes dizer-mo alto, podes contar às sombras
o que lhe farias agora, ou como gostas
de persegui-lo no chão, como se de súbito
nos fosse levantar as tábuas do soalho. E sim,
se fazes questão ponho ao lume tudo isso
subo-lhe as escadas, o perfume de ervas abrindo
rompendo o ar salgado, acendo o rosto antigo
que tínhamos tão absorvido sobre as águas,
essa expressão que nos foge, o assombro,
um fôlego que nunca mais sentimos.
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