domingo, novembro 14, 2021


O mundo tinha acabado mas havia ainda
quem nos achasse irresponsáveis
porque nos sentámos para assistir às classes
de um louco, ao dilúvio, à sua armada
de dias de chuva. Ele mesmo
se havia dado alta por meio de outra fuga,
abandonado de vez esta instituição miserável,
e era uma luz inquieta no meio de nós,
não sei se anjo ou desastre,
queimava como um círio,
num último respiro prolongado
quando mais nenhuma música nos parecia
possível e já nada de natural
se fazia ouvir neste mundo.
Os versos não tinham pulso,
só recordações falsas, boatos e intrigas
numa língua de cegos;
tudo rombo, inodoro, demasiado vago,
tábuas de madeira podre de um antigo passadiço.

Nesta água inerte como um espelho,
de que nos vale lançar outro bote
se sabemos já a morte de cor
e no quarto do lado lhe ouvimos os passos?
Tens a mesa a que o mundo se reduz,
esse atlas desfeito, herbários, rituais,
as anotações sobram como migalhas 
de certas visões persistentes
(e que rudes se tornaram os nossos sonhos).
O ouro que havíamos roubado, ainda cintila,
dentes da boca de tantos,
desses que dizem silenciosamente
para si mesmos o raro pássaro
que ainda cruza estes céus. De resto,
quanta dor para medir um verso?
Os olhos abertos para sempre,
um farol que se apaga bem ao longe
numa página nocturna, sem deixar cópia.
O certo é que ninguém dará a isto
muita importância, não antes
que o silêncio no final de um verso
destrua a primeira cidade.


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