terça-feira, novembro 30, 2021

 

Para ler baixinho, na próxima sessão de OBITUÁRIOS E EPITÁFIOS

-----------

Grande parte da poesia que hoje se escreve em lugar de uma perspectiva da morte tem tão-só para nos oferecer uma perspectiva da morgue. Muito do que se diz e faz não passa de exalações e borborigmas de cadáveres, assim, não estranhámos quando um dia destes um amigo nos ligou exaltado, quando dias depois de termos sabido da morte de um desses tão emblemáticos, que em vida foi uma espécie de anúncio de casa mortuária, depois de lhe termos redigido o obituário, três dias após ter sido pronunciado morto, e, enfim, enterrado num mausoléu com direito às mais penosas mordomias, foi visto a andar pela cidade, à porta de antigas tabernas, pedindo dedinhos de uísque como quem pede leite, levado pela noiva, essa que ele mumificara em vida com as ligaduras dos seus tantos versos, uma Beatriz carcomida, falando de pássaros com moscas pousando nos lábios, foi levado por ela ao túmulo como se leva uma criança de volta para a cama. Afinal, tinha já preparadas eternas cerimónias de viuvez, homenagens ciclotímicas, uma longa procissão lutuosa, e não estava para ver tudo isso estragado por mais birras de morto-vivo. Foi assim que pela segunda vez, para quem o viu, houve a possibilidade de nos despedirmos dessa figura hamletiana, no seu arrastado e persistente debate com o crânio de um Yorick qualquer, naquela armação ricocheteante de influências, como um louco desses daninhos, que são piores por excesso de bom senso, naquela rezinguice muito honrada, gerindo o seu rancoroso conventículo, promovendo e despromovendo os seus tristes sanchos, os sacristãos no seu séquito, exercendo sobre eles a sua melodiosa coacção, para torná-los mais caninos. Tendo dedicado a vida a essa perpétua ameaça do “já me vou”, merece bem que lhe multipliquem pela cidade as lápides, que persista esse consumo de mortos, o destes que trazem cemitérios no bolso, agitam-nos como a chaves, acham-se organizadores de almas, e enfim entram pela morte como se não fosse nada. Ou antes: como quem entra em casa.

-----------

Em sinal de homenagem, aqui ficam algumas traduções de Leopoldo María Panero.

“dans la morgue, avec les yeux grands ouverts”

Já nem sequer o pesadelo existe
do crime, a luz
atrozmente atrozmente branca da morte
onde um miúdo desenha com as suas fezes o cadáver
branco do universo
– o homem olha o universo, mas
o universo não o olha a ele (Robbe-Grillet disse-o) –
e é como se um clochard cuspisse
contra o mundo
e como se a dor fosse infame
como se de nada valesse sofrer, ou ter sofrido
frente ao nada
como as sílabas que varre o vento
como a escova
com que amanhã varrerão minhas cinzas

+++

Ah tu, poema que não és poema
cadáver de meus lábios
sombra cruel onde o homem não está
mas sim o vento que sussurra
ao ódio a tempestade do silêncio
e a pálida honra das sílabas
oh animal imortal, oh tu poema.

+++

Como um verme ama outro verme
a vida arrasta-se sobre a página
imitando o poema, imitando o homem
homem sem qualidades – Musil disse-o –
oh azul maquinaria do não humano
quem sabe quem falou,
se é que falou contra o homem
se é que fez de ouro a sua saliva
e disse: amanhã com os meus cabelos
criarei a fogueira
e verás que nada é o homem,
que nada é Deus, que como o nada
sou perfeito, e escondo-me
na perfeita simetria da morte.

+++

Ah Ñoñi, again

“crazy Jane talks with the bishop”
Yeats

Oh tu, alucinação perfeita
masturbatoriamente moves
o cadáver de meu falo o cadáver de minha alma
que ao ouvido me diz: “não és um homem”
és menos que um cadáver
e menos que a sombra
erecção sobre o vazio e sobre
o cadáver do nada
oh tu flor
que cortejas um cadáver.

Sem comentários: