Para ler baixinho, na próxima sessão de OBITUÁRIOS E EPITÁFIOS-----------Grande parte da poesia que hoje se escreve em lugar de uma perspectiva da morte tem tão-só para nos oferecer uma perspectiva da morgue. Muito do que se diz e faz não passa de exalações e borborigmas de cadáveres, assim, não estranhámos quando um dia destes um amigo nos ligou exaltado, quando dias depois de termos sabido da morte de um desses tão emblemáticos, que em vida foi uma espécie de anúncio de casa mortuária, depois de lhe termos redigido o obituário, três dias após ter sido pronunciado morto, e, enfim, enterrado num mausoléu com direito às mais penosas mordomias, foi visto a andar pela cidade, à porta de antigas tabernas, pedindo dedinhos de uísque como quem pede leite, levado pela noiva, essa que ele mumificara em vida com as ligaduras dos seus tantos versos, uma Beatriz carcomida, falando de pássaros com moscas pousando nos lábios, foi levado por ela ao túmulo como se leva uma criança de volta para a cama. Afinal, tinha já preparadas eternas cerimónias de viuvez, homenagens ciclotímicas, uma longa procissão lutuosa, e não estava para ver tudo isso estragado por mais birras de morto-vivo. Foi assim que pela segunda vez, para quem o viu, houve a possibilidade de nos despedirmos dessa figura hamletiana, no seu arrastado e persistente debate com o crânio de um Yorick qualquer, naquela armação ricocheteante de influências, como um louco desses daninhos, que são piores por excesso de bom senso, naquela rezinguice muito honrada, gerindo o seu rancoroso conventículo, promovendo e despromovendo os seus tristes sanchos, os sacristãos no seu séquito, exercendo sobre eles a sua melodiosa coacção, para torná-los mais caninos. Tendo dedicado a vida a essa perpétua ameaça do “já me vou”, merece bem que lhe multipliquem pela cidade as lápides, que persista esse consumo de mortos, o destes que trazem cemitérios no bolso, agitam-nos como a chaves, acham-se organizadores de almas, e enfim entram pela morte como se não fosse nada. Ou antes: como quem entra em casa.-----------Em sinal de homenagem, aqui ficam algumas traduções de Leopoldo María Panero.“dans la morgue, avec les yeux grands ouverts”Já nem sequer o pesadelo existedo crime, a luzatrozmente atrozmente branca da morteonde um miúdo desenha com as suas fezes o cadáverbranco do universo– o homem olha o universo, maso universo não o olha a ele (Robbe-Grillet disse-o) –e é como se um clochard cuspissecontra o mundoe como se a dor fosse infamecomo se de nada valesse sofrer, ou ter sofridofrente ao nadacomo as sílabas que varre o ventocomo a escovacom que amanhã varrerão minhas cinzas+++Ah tu, poema que não és poemacadáver de meus lábiossombra cruel onde o homem não estámas sim o vento que sussurraao ódio a tempestade do silêncioe a pálida honra das sílabasoh animal imortal, oh tu poema.+++Como um verme ama outro vermea vida arrasta-se sobre a páginaimitando o poema, imitando o homemhomem sem qualidades – Musil disse-o –oh azul maquinaria do não humanoquem sabe quem falou,se é que falou contra o homemse é que fez de ouro a sua salivae disse: amanhã com os meus cabeloscriarei a fogueirae verás que nada é o homem,que nada é Deus, que como o nadasou perfeito, e escondo-mena perfeita simetria da morte.+++Ah Ñoñi, again“crazy Jane talks with the bishop”YeatsOh tu, alucinação perfeitamasturbatoriamente moveso cadáver de meu falo o cadáver de minha almaque ao ouvido me diz: “não és um homem”és menos que um cadávere menos que a sombraerecção sobre o vazio e sobreo cadáver do nadaoh tu florque cortejas um cadáver.
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