terça-feira, novembro 30, 2021


Buscar os furos na paisagem,
pôr o olho num e seguir esmagado
o ledo baile das impurezas,
governar-se sem o pão deles, ou as sílabas
sempre mal cosidas, virado antes
sobre o instinto do que não chega à música
nem pode com ela,
essas coisas baixas em que o sangue
perde o seu perfume.
Ter a coragem do ínfimo, 
colher vivo o soluço irreal da carne,
arrancar de si a voz como se rasga a boca,
e os nomes como pedras que se atira
enquanto algures o último eléctrico
parece rir-se disto a que chamam cidade.

São horas destas a que perguntamos
quem vendeu um piano porque tinha fome
e disse ao gato que fosse caçar,
quem leva uma flor já só lâmina nos dedos
e vai riscando os carros a meio da noite
sob a feérica luz dos candeeiros,
e mais: quem se enche de cinza fumando no quarto
para espicaçar os fantasmas
ditando viagens que fez e ainda as que faria
enchendo a mala sobre a cama
de coisas que lhe faltam,
dormindo sobre o casaco num canteiro,
indo como muitos em busca da velha beleza,
aquela que nos serviu de consolo 
antes de acabar como veneno para ratos.

Durmo com um girassol morto à cabeceira
para assustar as manhãs,
se me viro sinto as vértebras a amolecer,
e dos sonhos o vidro quebrado
entre os lençóis, como um mar no escuro
que só se ouve se lhe dermos corda.
Sento-me à mesa, escrevo-me cartas
copiando-lhe a letra, o tom, até a alegria
desta mulher que vendia canários,
e que eu visitava uma e outra vez.
Comprei-lhe tantos quando havia dinheiro,
e assim alimentava o gato.


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