quinta-feira, julho 01, 2021

Voici l'avenir, l'océan
où má mort flotte à lá dérive

Jean Cocteau

Estou reduzido às poucas coisas
que me empurram, insistem, trazem de volta,
às luas amargas rondando a casa,
vejo o mesmo por entre o pó:
algumas imagens, o que estremece dentro.
Identifico o mundo pelos dentes,
palavras que se aguentam
endurecem repetidas, se escavam e brilham.
A viagem começa na boca de uns poucos.
Apontam e um astro desprende-se,
a sua luz revira-nos, derrama as sombras
como degraus no chão.

Depois dos primeiros anos de estudo,
reconheço-te pétala a pétala.
Depois de anos o quarto ainda está quente.
De noite, enquanto dormes, oiço-te ler
os jornais amarelecidos de um mundo perdido.
Talvez o paraíso só possa ser recitado assim.
A lanterna que baloiça nessa página há-de cair,
pegar fogo à vida.
Volto-me, como algo que cresce e se agita,
busco um corpo onde arder e aperfeiçoar os gestos,
que se dobre sobre um livro,
poço de águas turvas,
lhe arranque esta nutritiva prece. No mais,
espero que pássaros e abelhas o fecundem
perpetuando o mel, o voo, o canto.

Por esta hora,
já o vento convocou o seu conselho de guerra,
junto ao crepúsculo afina a história
que tem para os loucos,
arrasta-os docemente enchendo os jardins
dos seus passos em coro.
Ouve como também nos transforma;
sem gramática fixa, abusando de arcaísmos,
rimas profundas, buracos,
as luzes que deixa acesas, um pingar certo
e calmo que nos faz recordar o fim.
Quando a terra não tem já fome nem sede,
tudo se pressente numa gota de sangue
se levas o dedo atento sobre a frase,
se o feres deixando que a boca se abra
e sem um som o seu grito te desperte.


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