domingo, março 21, 2021


Toma-lhe paciente o curso, ora mudo
ora subtil e puro mas indiscreto,
aquele gosto libertado pela leitura
quando de um corpo a letra imita os modos,
prendes na boca uma mecha acesa
que nos lábios fracos te dá luz,
e a voz vai escapando como legenda fria
para o tanque sombreado onde se dissolvem
os pássaros como água da louça
entre as mãos dela, nos gestos que me deixa,
o mesmo que encontro nesta ruína singular, 
nas mesas de ferro onde parece 
que dos deuses resta um ritmo de conversa,
o eco que tanto se impacienta connosco,
isto, como a vida ainda se defende
e ouvimos falar de frutos que cospem as sementes
lembrando os gregos e o antigo entusiasmo.
Sem esboço, ligo-o, coso-te na pele
a saia embebida em sumo de ameixa,
fervida a casca no lume de outra imagem,
espessa tinta que enraízo até que o corpo
te leia em voz alta os versos: bolbos,
caules entrançados, a letra viva
com que me apareces distribuída,
visão soletrada em gotas de orvalho,
e dos dedos mordo-te as pontas, 
os vestígios da estrela debaixo das unhas,
instruções de que o desejo se serve
entre as eras e com infinito escrúpulo
quando dele se ouve por cima frenético
por baixo e ao redor a máquina de costura,
e o acertar e ferir-se no modo como cose
e recose essa sombra afeiçoada ao vestido
passado entre as grades e as glicínias,
como um segredo, a ilustração obscena
que trocam dois presos, como de mim
ainda faço outro sem vergonha para ter a quem
contar o que vi, que me sacuda doente, louco
exigindo ainda mais algum detalhe, o ângulo
sobre o teu ombro, dando voltas no pobre catre,
buscando as marcas, a pétala esmagada,
o triunfo irreal com que o sonho ampara a carne.

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