terça-feira, fevereiro 09, 2021


Do mundo faz-me bem a canção distante 
como o amante no escuro lê o corpo ao lado
surdo ao som do mundo
saboreando a corrente, fundo
entre coisas e seres afogados, 
como a prece de quem dorme e solta
esse aroma que tudo trama interiormente
ouvindo os nós da eternidade romper-se
do mesmo modo que a noite se acaba
entre dois corpos que se enganaram
e depois disso só resta o talento
para se fingirem mortos um para o outro,
como enfim o quarto e a ilha são recuperados,
livros e caroços, a mesa, o balanço
curvado por cima o firmamento,
a passada firme cheirando daqui a terra inteira
com o propósito de não ir a lugar nenhum,
agradam-me os limites da minha tumba,
as poucas palavras e a vista, o vazio,
as ridículas flores amarelas, o que o vento diz
quando ninguém o escuta, e então
sobre as cinzas neutras de um verso roubado a Lorca
pode ser que um leopardo se chegue
e o sinta articular enfim o silvo de luz
contando que os séculos salvem este olhar 
única flor que deu uma tão fraca memória
imagino que possa vaguear
como num frasco selado acontece
o tempo apurar longamente uma visão,
uma névoa ou um sono que se estende
para além da vida, 
como há ecos que prolongam uma obra
encantando outras mãos
como num cântaro uma água velha
a que o silêncio deixou o gosto
tece a hábil descrição do mundo circundante
essas sombras que mal se agarram
quando já não é a terra o que nos prende
mas do céu as raízes que se infiltram
e mexem dentro de nós, 
para que assim mesmo depois de frios
nos teus lábios se possa ler outra coisa
como se mastigasses um colibri
como se descrevesses o paraíso
chamando alguém que pouse na pedra
a cabeça e por um momento tolde o céu.


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