domingo, dezembro 20, 2020


A minha voz começou já a morrer,
sente-se o corpo num curso de água
encalhado, a soluçar na corrente,
vivendo a morte de outros,
preso por um murmúrio
à extremidade de um galho
mal toco as coisas, posso pedir-lhes
que se partam, que ouçam também elas
a melodia devorada pelas escalas
mas então, como nos faremos entender
de ora em diante? Os dentes
estragam-se-nos, apaga-se 
o contorno, movem-se margens
ouve-se respirar o afogado
e à luz desse vislumbre prolongam-se
desafiadoras as sombras,
flores assobiam a opereta do caos, e nós
não sabemos em que mundo vamos morrer
não sabemos quantos irão engolir
o último gole, ali onde nem as pedras
saberão já ser pedras. Ah Michaux
se a loucura se tornou um descanso
comparada com a lucidez,
como se mede esta frieza
se não podemos fazer força?
nem com a língua nos dentes e
tudo o que passa/ passa sem parar
os nomes chamam pelo avesso, arrepiam
começamos a perder a paciência, e tu
que nunca te fazes vista, nem contas
maldita seja a terra por tua causa.
Gostaríamos de recompor o firmamento
como um romance, páginas cheias de vento
mas com um cheiro sinistro
sem dizer a quê, a que absurdo, que morte,
meio corpo, metade flor, metade cinza
os insectos passam-na uns aos outros
uma ideia do que lhe ia na cabeça,
era já nesses dias alguém sem regresso
vagueando inquieto recreando-se
para nada, para criar um trovão
por uma escrita que ouvisse,
mais das vozes que se retiram, 
se perdem ou calam para sempre
do que das que continuam
tão detestáveis as que ainda
e mesmo depois, até ao fim, falam.


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