segunda-feira, julho 22, 2019


Mais que a falta de informação, o vazio parece crescer tornando-se respeitoso, talvez porque depreende o quanto ficou por dizer, e sendo os diários desses homens terrivelmente discretos, esgotam o absurdo daqueles dias resumindo tudo a impressões alheadas, algum comentário sobre o modo de soar dos pássaros aqui, algum devaneio um tanto frívolo não fosse a encantadora escolha das palavras, a ordem que assumem nessas tão curtas frases, com uma data impossível posta no fim, esse dia que já não viveremos com eles, embalado pelo ritmo das águas; comprei o jornal para lhos ler e fingir que o mundo, mal ou pior, continua aí, a vida remendada, e se este não chega a ser um dia belo (não há nada como a luz que lhes é devida), tem nele a sensação de um intervalo. As coisas irão certamente agravar-se, mas não para já, e por mais trivial que pareça, as palavras ainda podem ser postas para bom uso, mesmo se os jovens poetas parecem ignorá-lo, se o enfado e o desprezo são o que mais cultivam nos seus versos. As lutas melhores estão aí para ser travadas, toda a gente de um lado e ninguém do outro, e não deixa de ser aliciante não só a quantidade, mas a baixaria, o nível dos imbecis, e essas migalhas por que se debatem tanto... Se insisto em reescrever os diários é porque o pouco que dizem tem mais ouvido, e lembra-me o cuidado de Blas de Otero pra não acordar o rouxinol que dorme no gume do bisturi. Parece que oiço um deles falar enquanto apara a barba sobre o tanque, o outro a enrolar com um cuidado musical um cigarro, ando à volta da casa ou entro, tento interrogar os tão casuais objectos deixados no lugar onde se desmoronaram, atlas, herbários, a intimidade que deixa cheiro em roupas tão frias, o zumbido desses restos da história, alguma discussão, posso imaginar os últimos dias como o de prisioneiros de guerra, trocando confissões banais como segredos de Estado, que os reescreva não é para substituir ou alterar alguma coisa, mas para ouvir algo mais, nem que seja a muito custo, mesmo com fezes e sangue, com uma mão e com a outra, esperando que a luz ainda desenterre alguma linha; assim, a pobreza é uma razão, tal como esse desejo de fugir que torna irrelevantes as distâncias, depois dos maus tratos, tentando cansado a loucura, aprende-se como alguém dobrado sobre um piano riscado no soalho, a afinar a fome, com o ritmo cheio de bichos, combativo, brusco, um romance de detalhes, as ideias em pó, ossos quebrados de outras ficções, nacos de um romance que se recusa, até porque o mundo já não se aguenta; depois de tanto se envolver, o cansaço é o génio, aquilo que sai para lá da conta, o sobrante, e julgo que me terão reconciliado com a ideia de que qualquer verdadeira honra que este tempo se disponha a fazer-nos terá de passar por alguma forma de condenação, ainda que rodeando a última, a mais honesta, a morte; por isso, se da vida deles retive a clareza dessas tão límpidas notas, se me parece que vibram sobre a música de lembranças realmente duras, tudo isso me soa mais verdadeiro, apontado ao órgão que em nós suspira, a paisagem torcida como um pano, a pingar, retalhos ínfimos, o equilíbrio de quem aprendeu a esconder-se nas coisas que vê, modelando o infinito amorfo do seu inspirado hálito, afinal, se a vida nos surge por extenso é só porque nos habituámos à conversa, às tantas bocas que o dizem pegado, esses sentimentos exagerados, a forma suja de saudade em que ninguém acredita, uma coisa sem pele, essas baladas sobre o remorso e a redenção, tudo limpo, emocionado, uma humanidade para consumo de quem não viveu nada, nem se apercebe que a dor nunca ajudou a articular qualquer narrativa, antes a deitá-las fora, e assim passemos frio entre os apontamentos que restam, não duvidando de que os mestres morrem pelas costas, esquecidos ou atirados à fossa, e que não te quebre o lábio adolescente, não pouse nele a mosca dessa fala, a deliciar-se com o mel do desastre, se podemos continuar, sentir contra a carne o peso de uma estrela como o da própria respiração, talvez tenhamos ouvido o suficiente e nos seja impossível fingir que tudo não passou de uma brincadeira.

Sem comentários: