Para o Miguel
Espalhadas ao redor da minha paciência, uma porção de coisas resistindo a toda a utilidade: baldes, a pá e o arame, gatos de cimento, pulgas, defuntos, os retratos segurando as paredes, uma ameixa mole num prato... Tenho uma fome sobrenatural de objectos naturais, e peço a cada um que não me deixe só com as palavras. Na minha vida é tarde, mal oiço já os passos do sol e se os frutos caem sinto-me seguido. Vivo intrigado com as notas secas, ínfimas que escapam de troncos húmidos, o refúgio de bichos que esticam a corda ao mais espantoso silêncio. Afinam tudo, até que toda a terra se converta em eco. Na pedra ainda há pouco a chuva citava Verlaine perfeitamente, as poças ficaram calmas como segredos de escura água estelar. Não vou dizer que os conheço, mas sei de tipos a quem o mundo de verdade pertence, só têm os cigarros em que passam perdidos, isso e um ouvido de pardal, tão trabalhado que não lhes escapa um soluço de bom calibre, nem inversões na brisa, cortes de sentido ou imagens dessas que iluminam bruscamente a nossa época. Não os encontro por estas ruas, mas tenho-os lido, sigo esses cuidados todos: como cada manhã limpam as armas, como de noite tiram o chapéu e tapam o peito quando olham para cima atentos a movimentações no céu, como compõem debaixo da pele os ossos numa certa ordem. Se em tempos só tínhamos por horizonte a parede, hoje trazemos ao cinto as chaves desta terra. Sobre ela as flores projectam sombras na forma de cruzes. Enterrámos tudo, impusemos o terror da beleza. Quando passamos as distâncias ainda movem os lábios, aos poucos retomam os idiomas abolidos. Leio sem descanso. E se já desapareço, ou me custa dizer o que faço do tempo, no chão, os vidros do copo partido de que agora mesmo bebo, dizem-me que estou acordado. No piso de cima, de um lado ao outro, agitado, pareço ter companhia – vou-lhe perguntando em que guerra nos poderemos salvar? Por muito que me trema a mão, o quarto ou o juízo, isto pelo menos eu tenho: a confiança de saber que um golpe firme, de pura intenção, basta para que o meu verso rompa a mola dos anos. Neste país que me oculta e me nega, naturalmente, quero a admiração do meu inimigo. Quero que se entregue, traga a corda e o nó feito. Hei-de cuspir o caroço da ameixa, podemos esperar juntos que a árvore cresça.
terça-feira, agosto 14, 2018
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