terça-feira, março 20, 2018


A memória não nos diz muito sobre como voltar
e acabamos contando-nos estórias absurdas
engravidando pormenores
como o da hortênsia que largou o vaso
e colonizou o renque com a chuva a encher-lhe
a cabeça de ilusões napoleónicas.
Há idades que tivemos por um dia
com sorte algumas semanas e os sapatos
se os guardámos são uns números acima
destes que hoje calçamos

deus durou tão pouco por aquelas bandas
os rapazes deram a moral de comer aos instintos
a miséria faz outros furos, tinham mais fios
entrelaçados em tudo, ao passarem
a natureza puxava conversa, e há os exemplos
a lei que se escuta raspando o remorso
da pele, depois o vento ali era um jovem macho
exibindo um belo tesão entre os estendais
o lábio preso em tudo o que é frincha
de tarde chegava doce afinando violinos
com intervalos de pássaros que ele treinava
mas logo que a luz denunciasse a curva da terra
tornava-se brusco, tirava um vestido
e ia fotografar-se com ele no meio
de uma tempestade

Mesmo dentro de casa esses sinais do tempo
têm outra convicção, as flores que lhe dei
já enegrecidas viraram a cama
rasgaram os lençóis onde dormimos
os insectos deixam rastros benignos que ele lê
como nós os romances, os quadros diluíram-se
nas paredes deixando aos pregos o peso
de inventarem paisagens mais vivas
que a das janelas, impressões que de tão ferozes
fazem de ti um alvo, eu que bebo devagar
como as flores, me comovo como um velho
dos do princípio do mundo, vivo admirado
Vejam como já vai na quinta reincarnação esta
flor de pó e cuspo, cabelos, velhos papéis
como entre a desarrumação ensaia
o começo de um outro corpo, labirinto
para reencontrarmos as nossas ânsias míticas

Nisto não deixo de ouvi-los um a um.
Onde está o real? Não, não custa perguntar
nem importa que saibamos já de cor

as respostas ensaiadas dos que a morte
tem de castigo deste lado,
tantos que insistem dar à linha
como máquinas cosendo impressões de lixo,
insistem, rasgam os lábios em copos partidos
querendo recuperar uma embriaguez perdida.
Não importa. Deixo-me seguir a meio da noite
só já sonho coisas escabrosas
um caroço sangrento, duas dentadas
e o que ficou do fruto foi isto esta ferida
perfumando o espaço da minha à tua boca.

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