segunda-feira, novembro 13, 2017


The mind is its own place, and in itself
Can make a Heaven of Hell, a Hell of Heaven. 
John Milton

Não sei o que me acorda,
para quê?,
recolho os pedaços e levo da cama
este meu sonho interminável,
meu tempo perdido.
Há qualquer coisa,
uma dessas dores de cabeça,
o meu ombro
atravessado por uma flecha.

A claridade murmura entre as frinchas
e o rádio no andar de cima
larga outro domingo.
Lá fora cirandam vultos amolecidos
pela melodia com que os pássaros
estendem os caminhos da manhã.
Aqui, apago todas as minhas luzes
e espero no corredor
com um vaso no colo
e, sozinha,
uma flor que de tanto esperar
já só a mim cheira.

A torneira aberta depois do banho,
fio de uma história que se embaraça
sempre que volto a isto.
Brincos, coisas perdidas,
uma chave que já não abre nada,
a estrela caída
que apagámos com o cobertor.

O fascínio do estrago olhando em volta
a perfeição da dor.

Com a mão sinto o rosto apagar-se.
A minha sombra veste-se de mulher,
vai, vem,
e, de cada vez,
traz-me de volta alguns gestos teus.

É bom que seja demasiado tarde
e já não voltes.
Teremos sempre a banalidade do fim.


II

Soletrei junto ao teu corpo todos
os idiomas da treva.
Hoje gaguejo de propósito,
não acabo, deixo-me a meio
das coisas que ia dizer.
Empurro tudo o que esqueceste,
as roupas penduradas.
Há duas noites que
se enfiou nelas um grilo e
não sei como tirá-lo dali.

Endoideço com formas,
padrões no silêncio.
Agachado,
de olho no buraco da distância,
faço tempo. Oiço o mar,
chega-me à boca o gosto
de água salgada.

Ainda guardo o desenho que fizeste:
uma maré baixíssima
devolvendo suicidas e náufragos
enquanto o vento rói na praia
as vértebras de navios sem casca ou nome.

Coisas de nada exaltam-me,
dividem-me,
depressa me sinto numeroso
e logo se junta uma maioria em mim
que me manda sair à rua.

Saio então,
pouco antes de acenderem os candeeiros,
quando se esgota a prosa seca das cigarras
e a pauta nocturna
é distribuída pelos grilos.

Somos muitos mas cedo nos perdemos.
Uns atrás disto, outros daquela,
há um que sai atrás daquele...
Dá para tudo.

A cabeça num embalo para o inferno.
Quando já somos poucos,
um leva-me o assobio, outro fica em silêncio
e o que me resta traz a memória mórbida
de uma canção que desce
estas ruazinhas escondidas.
Passos bebidos,
doce e lentamente.

Olho os canteiros onde os gatos
enterram agonizantes restos de vida.
A chuva bebe da garrafa
que me caiu da mão.
No bolso sinto aquela pedra
que guardei noutro poema.
(Se te visse agora
juro que te abria a cabeça.)

Praças imensas, quase desertas,
a visão magnífica
de uma cidade rendida
sob a mira de dois canhões enferrujados.
Aguardando, calculando distâncias.

Quando chega a hora,
recolho os meus.
Viriatos nestes cafés gozando a ruína
do império.
Guiados pelas constelações
à mesma rota maldita,
mendigando nas ruas uma esmola,
um verso limpo, um corpo
que soçobre entre as aspas do desejo.

Cruzamo-nos entre os corredores
de hotéis imundos,
uns cheios de sorte outros nem tanto.
Cada um faz o que pode por si.
Depois regressamos juntos a casa
onde sempre nos espera
a banalidade do fim.

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