quinta-feira, outubro 19, 2017


O real é como o fantástico:
mede o mundo com medidas arbitrárias
 
Rainer Maria Rilke

A tarde levanta as suas âncoras rosadas
e parte,
deixa ao frio todos os vestígios.
Sombras misturando-se ao sal e à neblina,
charcos, bichos d’água,
um braço de canteiros
com as flores que lhe restam
farejando na treva.

Negros, mínimos sinos,
espicaçados pelo vento –
sem cor, quase só ruído e cheiro –
soam longamente
enquanto as ruas se estreitam,
já sem luz,
e a distância nos diz coisas incríveis.

Queres as horas certas, perguntas,
pedes tempo a qualquer corpo triste.
Deixas-te amparar no primeiro café.
Estrelas extremas
sobre estas mesas de aço,
pedras assobiando ao passario.

Qualquer fantasia já vai juntando
umas letras, aprende a escrever,
escolhe um veneno.

Ócios nocturnos,
a noite mesma
um ritmo de cotovelos, este avolumar
de páginas enfurecidas.
Deserções, desacatos, versos imperdoáveis.

Que idade perdida,
que cheiro a desinfectante,
e a veemência destes velhos
contadores de lérias-lendas,
acorrentados aos seus inúteis lemes –
em cada bolso um reino
só de traças.

A afundar-se há anos a um canto,
um piano decrépito
acarinha alguma balada profana –
tão cheia de escuridão,
como se dela bebêssemos noites futuras.

Recolhemos a nossa morte
na vida dos outros.
Por isso vens,
fazes-te vítima de tudo:
as coxas, meias de malha,
mãos de louça antiga,
sardas
e que boca, que madrugada adolescente.

O olhar, pequeno vadio
de cor perdida,
segue apalpando o que tem por diante,
antes que também esfrie
e o desejo escureça
inteiro
numa garrafa.

Irás depois, sem nada,
em busca de algum espelho doce
e de uma lâmina lenta
que te rasgue um último sorriso.

Sem comentários: