Grupo do Gelo. Seis décadas de um café à beira do abismo
Há 60 anos, um grupo de jovens indómitos começou a frequentar o Café
Gelo, no Rossio. Unidos por divergências comuns, criaram um «exílio
criativo» que teve enorme repercussão na arte portuguesa do século XX.
Para lembrar o Grupo do Gelo vamos ao fim e depois logo veremos o que
começou por ser. Conta-nos Luiz Pacheco como no 1 de Maio de 1962 Lisboa
se pôs a estrebuchar, as ruas fartas, cheias de uma gente lixada, que
se manifestava, e logo chegou a polícia de choque, «armadíssima e
vigilante e aguerrida», houve pancadaria na Baixa e Rossio, e houve
«tiros, mortos, feridos, correrias, cacetada brava: carros de água e não
só: azul de metileno, a porcaria duma tinta que sujava tudo, marcava os
manifestantes». É o que havia no país quando alguém se lembrava de
desgostar das coisas como estavam. O povo nesses dias era mais para ser
mosca e comer tudo o que lhe deitassem no prato, mesmo se lhe soubesse
pior que mal.
Nisto houve uns que se reuniam no Café Gelo, «junto à esquina dos
telefones no Rossio», que, não contentes com a bela vista para a
zaragata, terão arremessado açucareiros de metal contra a polícia. Uma
nota: era assim chamado, segundo Helder Macedo, «por causa dos blocos do
dito gelo que levavam para lá das serras, nos tempos inaugurais d’El
Rei D. Carlos». Voltando à confusão, Pacheco garante que se pôs muito
quieto, no seu cantinho, mas a confusão gostava demasiado dele, e porque
tinha a seu lado «o pai da Fernanda Alves e lembro também a Fernanda, o
Ernesto Sampaio, o Virgílio Martinho, o João Rodrigues», bastou um
pequeno incidente e veio a polícia distribuir porrada por todos. «No dia
seguinte, o Cerqueira, gerente do café, foi chamado à esquadra do
Nacional e ficámos proibidos de frequentar o Gelo.»
Este foi o fim de um grupo que se reunia no café que ainda lá está, hoje
algo mortificado, com painéis a fingir orgulhos históricos, servindo
uma clientela mais de passagem do que propriamente de assíduos
frequentadores, e muito menos de poetas na demanda do «elixir de vida
curta,/ de longa morte lenta e absoluta/ e sílabas secretas», como nos
diz o retrato de grupo que fez António Barahona na sua Memória do Café
Gelo. Findas as tertúlias, o grupo foi ficando mítico, coisa que
acontece por cá à medida que o tempo, apesar de tudo, passa, e porque
pouca coisa traz de realmente novo. Dá-nos para «os saudosismos
exaltados», segundo Pacheco. Já Helder Macedo, ao lado do saudosismo,
fala de «uma nostalgia por qualquer coisa que hoje não poderia haver, e
ainda bem», mas lembra que o pior deste vício «é uma tendência para
neutralizar os riscos que aquelas pessoas tomaram».
Porque o Gelo foi uma espécie de reduto na Lisboa que se queria a
capital de um Império perdido do avanço da história, como da cultura,
uma pátria encafuada na sua pequena moral. Houve ali um grupo de jovens
que queria exilar-se, escapar aos seus destinos, fugir de tudo, até dos
cafés literários, e foi antes de tudo um bando acidental que começou a
juntar-se no café de onde, em 1908, Alfredo Costa e Manoel Buiça saíram
para o Terreiro do Paço e mataram o Rei D. Carlos e o seu filho D. Luis
Filipe. Mas como vem insistindo Helder Macedo, professor jubilado do
King’s College, em Londres, «não havia um grupo de convergências mas um
grupo de divergências comuns, que foram sendo manifestadas de
variadíssimas maneiras».
Pelo Gelo passaram, entre outros, João Vieira, José de Sá Caetano,
Gonçalo Duarte, Helder Macedo, José Manuel Simões, João Rodrigues, José
Escada, Herberto Helder, Ernesto Sampaio, António José Forte, Luiz
Pacheco, Mário Cesariny, Henrique Tavares, Saldanha da Gama, António
Gancho, António Barahona... Pacheco lembra como não só não havia
homogeneidade etária, como não se respeitava «nenhuma programação
estética». Mas se «dali não saiu Revista, doutrina, escola que se
aproveitasse», seis décadas depois o que explica o saudosismo em relação
a uma vivência dissidente que, segundo Macedo, foi em grande medida
inventada pelos que se põem a imaginar aquela salganhada?
Talvez a explicação se cinja ao espanto de saber que ali conviveram
alguns dos espíritos que viriam a ter um papel transformador da arte
portuguesa no século XX, e particularmente no que toca à poesia. Mas
além dos poemas, do que chegou aos livros, houve a vida que abriu como
«bruta flor do querer». Diz Pacheco que naquele «espaço de convívio em
liberdade plena, feroz e mútua crítica, nenhuma contemplação pelo
arrivismo, a vida prática, as etiquetas sociais que noutros meios, da
mais categorizada Oh Posição oficial se evidenciavam. E houve suicídios,
amores desatinados, gente perdida para sempre».
É por isso fácil colher um grandioso mito a partir de uma época em que
os cafés são famosos apenas por aquilo que lá se come. Célebres são os
pastéis de nata, as milhentas variedades dos bolos tradicionais, a
vidinha que se oferece e consome no seu convencimento gourmet. E o
convívio, nos cafés, como nos transportes públicos, como em toda a
parte, passou para a internet, para as redes sociais. E a palavra ou o
juízo, que já não são proibidos, valem menos que os números, contam mais
consoante os likes. A crítica, por mais feroz, é neutralizada por vagas
incessantes de elogios.
É natural, assim, que o mito se sinta varrido deste tempo e busque
ligar-se ao passado, àquelas «mesas de mármore, cadeiras sépia; eis um
café à beira do abismo», como o ilustra Barahona na belíssima evocação
dos seus versos, que revivem «conversas incendiadas, sismo a sismo,/ no
desabar da época.// Revolta, ódio, fome, febre atroz:/ no riso pode
haver isto e tristeza/ e grande amor do sonho, e da beleza/ a que o
grupo dá voz. // Não morreu este grupo: é perene/ seu eco que deixou
alto-relevo/numa parede-mestra, aonde subo (...) e vejo/ uma mesa
ocupada por nós todos:/ assembleia de pássaros ignotos/ em ilhas de
desejo.»
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