Quem poluiu...
Camilo Pessanha
Esses lençóis onde dormi com ele,
onde temi morrer acompanhado
– quem os limpa, quem os põe de lavado?
Mesmo depois de rasgados, conservam
a treva do seu corpo luminoso.
O meu coração rufava, tambor
– na cama até varanda de alta torre.
O corpo dele igual ao grito rouco
de falcão na nobreza do voar,
ou de águia – na doce mira do rapto.
Nesses lençóis – onde dormiu um deus:
onde temi morrer na sombra de outrem.
Sombra longa de faca que foi círio
vermelho numa tenda toda branca.
Esses lençóis onde dormi com ele,
ninguém devolve em branco do vermelho
de círio não pequeno de tamanho
nem parco de consolo na memória.
Castos lençóis – aí dormiu um deus:
luz vermelha de círio nesse branco.
Círio não triste embora já pretérito
– nem parco de beleza agora frio.
Quanto tempo padecer meio louco,
em lençóis embrulhado tal fantasma
do pai do Hamlet, noutra Dinamarca
– sem mulher nem filho, apenas morto?
- José António Almeida
in Arco da Porta do Mar, & etc
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