Também me lembro daquele quarto e
de quanta doçura por ele escorria, espécie
de novela pelo rádio, ouvindo-se através
das paredes, todo o prédio seguia os episódios
era um tema constante o casal que não
concedia tréguas, sem aviso, rombos
no casco, gritos fosse porque fodiam ou
se engalfinhavam, às vezes tudo misturado
gelo e sol, arremessando este mundo
e o outro, apareciam logo depois à vez
humilhados, nus, no pátio, frutos
de um peso alucinado, fumando suspensos
querendo mais, mas todo aquele barulho
agitava a vizinhança, a polícia vinha, subia
estavam sempre os dois tocados,
desmanchados, e logo desviavam a refrega,
queixas, mas quem, pois que se metessem
nas suas vidas, coisa cruel de se dizer,
quais vidas se só eles semeavam no prédio
tão grandiosa algazarra, sempre de noite.
Já as manhãs pareciam sagradas, calmos
pela janela assistíamos como cultivavam
cada detalhe, aquela composição delicada:
as vagens de alfarroba a secar, gerânios
em latas de azeite, pelargónios com um brilho
quase sobrenatural encostados aos degraus,
e o cheiro a mijo de gatos perfumando com
aquele toque de acidez a roupa pendurada,
aqueles modos com que se cruzavam
em silêncio, dançando pausada secamente,
eram a nossa vida íntima, a luz e o tumulto
de cada dia, esse compasso que nos dava corda,
como na infância a ficção chega a ser um instinto,
como mais tarde nos basta viver encostados
ao mar, de outro modo
estaríamos apenas mudos e mortos, a sós
com os nossos corpos, os nossos nomes,
sem um pingo de escândalo ou fantasia.
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