Somos poucos e estamos mortos
mas tem de haver mais que isto,
e então que se segue, onde vamos?
De onde vimos nunca chegámos
a ter certezas, só que vínhamos a crescer,
engrandecidos por mentiras, balelas,
socorridos a cada curva pela imaginação
com o balanço que o acaso impõe
lembrando-nos de deitarmos mão
a tudo, numa odisseia ruidosa
sem destino certo e agora tão só
desde há uns anos sobro eu e
mal me reconheço viro-me
para o fluxo escuro e sangro depois
de ter desfeito o meu arco
a flecha entrou e saiu, aprendeu
a assobiar e assim
dilatadas as narinas, farejo o século
e rouco gasto persisto, náufrago
da carne, mais do ouvido
que do sentido, dando braçadas
na água onde o outro perdeu os papéis
e terá feito os últimos cortes essenciais.
O país é que de lá para cá não tem já tanto
a ver com o mar, é mais o fundo
esta paisagem constante e trôpega
que nos soa como se reclamasse
cenário meio queimado onde se perderam
os sóis de estações já mortas.
Alguns ainda seguem à proa nos estendais
quais velas, e ali mordem suavemente
algum ombro como eu quis também
aprender a proeza de falar tão baixo
tão perto e vi-a ali prender os lençóis
enquanto comia cerejas, levava duas
às vezes três de cada vez e cuspia
os caroços sobre a vizinhança, e eu
atirando pedras não achava isto
tão diferente de cantar, medir o mundo
para que a distância pudesse enredar-se
na voz, e fiz o meu trabalho na corda
prendia-lhe restos vivos frases cascas
uma mansa tempestade de guizos, e meses
depois no quarto agachados nas crateras
roubávamos os contornos às sombras
esboços daquela vida perdida e
de novo a nau, um museu de cacos nadas
a ensaiar sinais sobreviventes os nexos
entre o que escapou a um dilúvio
e assim é que o desastre acabou
por se tornar a nossa religião
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