segunda-feira, dezembro 22, 2025

Gil de Carvalho (1954-2025). Forasteiro, mesmo das coisas eternas



Há mortes a que o alarde não convém. A de Gil de Carvalho, se lhe quisermos ser leais, deve ater-se à transmissão de alguns sinais respeitantes a uma paixão antiga, de modo a embalsamar apenas “o azul da carne”. O mais justo talvez fosse tentar fazê-lo falar. Sem exaltação, que nunca foi um registo próprio da sua intensidade tão subtil, rarefeita. Era um registo ulterior, uma aprendizagem feita com as ruínas, permitindo-se apenas cumular os detalhes que escapam. E a sua obra persiste naquele esforço de subir “a melodia do lugar distante”, atravessando o tempo que dependia de se chegar a conhecer do mundo “a porção entornada”. Poeta, cronista, tradutor, orientalista e sinólogo, talvez se visse como esse “vendedor do pequeno eclipse”, alguém que nos versos, como nas crónicas, nutria aquele grau fascinante de concisão que implica uma longa demora e maturação. Articulava elementos raros sem trair a dispersão, o acaso, sendo fiel à segunda lei da termodinâmica, explicitamente referida num dos seus poemas, e que determina que, ao longo do tempo, em qualquer sistema fechado, a propensão para a desordem aumenta sempre, o que não explica só a irreversibilidade e a expansão do universo, mas o caos de todas as ligações. Como essa aranha que taciturna tece o seu fio guiando-se “pelo nervo de música”, seduzindo a matéria que, assim, admite ser proferida, cingida “por patas encantadas”, deixou-nos a impressão de uma “vida, suspensa do olfacto”, vibrando nesse “fio precário, igual/ à vítima.” “Vem depois a saliva/ coada num gesto perfeito”, diz-nos ele, tratando-se de afinar essa tensão entre si e o mundo, com os recursos que nos são ainda disponíveis. 
Tendemos a julgar “hoje o nosso mundo um/ foral exausto”, e assim, Gil de Carvalho intervém de forma a reafirmar o gozo exploratório, a aventura para que o ritmo nos chama, dando a possibilidade de resgatar a carne que nos aparece rouca nos mercados. De resto, está lá no princípio, essa indicação fundamental: “antiga elipse, a carne”, como se o próprio sentido fosse uma acumulação sumária, essa mesma carne difícil, com a sua composição tempestuosa, e que “fere o rouxinol”, pela condição de resto, rastro, reflexo de tudo o que vê e toca. E a poesia surge então como um cuidado ocioso, respondendo à “dor/ de ter um nome e perfumá-lo/ sem saber porquê”. 
Com ida e regresso, a viagem é um modo de separar as mãos do pulso, medir o mundo, as relações, ligações, descolar os sentidos, reparar “a íris suja”. É também um modo de ter em dia as imagens que guardamos “no armário d’água”, catalogando as tantas “impressões da retina”. Entre “o coito, a tradição hermética”, nesta poesia tudo se perspectiva obliquamente, tudo fica sujeito à leve instabilidade de um clima de sonho acordado. “O pequeno edifício, oscilou,/ na ágata fresca da margem.” Estamos claramente naquele período de ressaca dos grandes movimentos, mas depois de tudo isso ainda desperta em nós um desejo de força, e é possível fazer a flexão “dum músculo roubado à sombra”. Porque afinal, cada um de nós ainda nasce com uma boca, capaz de, entre imagens, definir uma certa espera, encostar o seu peso nas cordas, observar “o rasto claro das constelações”, e entrelaçar num ponto só o seu destino, admirando como “na viagem de um astro a órbita apodrece”. 
Esta é uma poesia feita nas costas das grandes tradições, das linhas fundamentais, por meio de um verso de substância incerta, que assim “indica/ uma rota às profecias”. Trata-se mais de desandar, ir provar as coisas... “O paladar é o percurso/ deste deus.” Logo depois, Gil de Carvalho nota como “ninguém/ o sabor sabe das maçãs que/ na queda são pintadas”. 
Nunca contou com verdadeira fortuna crítica, apenas esses apressados exames dos nossos agentes alfandegários, com a excepção de uma recensão de José Ricardo Nunes, a “Tarantela & Viagens” (1999), na Colóquio. Já ele, por diversas vezes se mostrou um crítico literário de uma extraordinária acuidade, atento, muitíssimo hábil nas descrições, tão escrupuloso e dedicado, revelando um talento magistral para a composição de compêndios. Se algum editor se tivesse lembrado de lhe pedir que nos fornecesse outras leituras, outras pistas, para que não ficássemos sempre à mercê desse “grito curto no espelho”, teríamos certamente outros ângulos de apreciação e linhas de fuga para não andarmos sempre confinados ao mesmo. Não faltou, contudo, quem lhe gabasse aquela sua antologia da poesia chinesa, esse impressionante trabalho de recolha, tradução e anotação que abrange cerca de três milénios, fazendo chegar até nós poemas de uma centena de poetas e ainda algumas dezenas de anónimos. Hugo Pinto Santos assinalou, aquando da segunda edição, bastante ampliada, como naquele conjunto, “a todos os títulos modelar, Gil de Carvalho rastreia uma poesia de tradição milenar em que avulta uma arte regida pela ‘medida justa’”, permitindo-nos descobrir uma produção artística que é o resultado notável da “civilização que mais lugar deu à poesia, o que quer que esta seja lá”, segundo o antologiador. Um contexto cultural, adiantava ele, em que o “poema – e alguma prosa clássica – é o monumento mais durável”, originando uma poesia que é “materialista, mas que deixa de fora um certo ‘visível’”. 
Tudo isto é bastante instrutivo sobre os próprios modelos em que se inscreve a poesia de Gil de Carvalho, que, fugindo da bravata, se configurou como um eco bravio, bem mais do que um enredo de glosas, uma forma de adoptar processos de fervura, libertação das matérias e sua reelaboração. Assim, reconhecendo que conhecia “somente os rudimentos da chamada língua chinesa clássica”, esclarecia como o que fez, “e a que posso chamar decifração e sua realização num poema, foi usar trabalhos ocidentais, e, o mais possível, chineses, quando acessíveis em línguas nossas”. É evidente que se soube valer desse estudo, compulsando e recolhendo “espécimes exímios de uma arte apurada e metamorfoseada subtilmente ao longo dos séculos”, esses “exemplos notabilíssimos de um fazer despojado da subjectividade, do exaltamento, da dicção carregada de camadas de sentidos (...). Uma poesia que contrapõe ao subjectivo uma abordagem directa e despida das coisas, do acontecer”, adiantava Pinto Santos. Tudo isso foi aproveitado, “o fértil pó dos ícones”, esse prazer não propriamente de dominar a tão intrincada estrutura íntima de uma língua como do próprio tempo (“o sangue do tempo, derramado”), colocando-se perante ele como diante do corpo de outros elementos – “os joelhos estalados na membrana do mar”... E se a poesia parecia ter ficado dominada pela compulsão da teoria, pelo excesso reverencial a certas teses, aqui, esta, furtava-se, preferindo cultivar o imemorial sentido de assombro diante das coisas do mundo, indo no sentido contrário ao dos mitos que nos servem de padrão. “Parámos./ Da janela vi o sexo,/ pousado na mesa, o ferro,/ esquecido na mão ágil, a pata/ pousada na lâmina, se perfuma,/ é um ombro.” 
Há algo de mais precipitado, uma sensação de quem faz a sua viagem em estado de desamparo, numa lenta queda que assim se esquiva a grandes compromissos... “antes que a sombra/ correndo pelo fio/ te prendesse, nítido, à morte”. Ele diz-nos que as imagens servem quem as caça, quem as espreita e se mostra capaz de renovar as suas palavras através dessas visões tensas, vivas. Há uma urgência nesta obra, como quem segue um rastro impossível, dando-se conta de que “uma vida não basta/ para termos um rosto/ e levá-lo, sem morte,/ ao lado encontrado”... Por isso, a marca desta poesia é esse escassez sinuosa feita da imposição do detalhe abrupto, das viragens súbitas, transições, entoações meio profanas, anotações várias, tudo numa respiração entrecortada, dando conta do avanço feito num território lúdico, que exerce naquele que o atravessa uma sensação de delírio. “A córnea oscila nesta água de mentiras”; enchem-se cadernos de viagem de que depois sobreviverão apenas a fulgurância de alguns contornos, contrastes, imagens peculiaríssimas, sumários... Naturalmente, estas deambulações, sejam elas geográficas ou vivenciais, acabam por originar uma vocação despreocupada, um modo de admitir e integrar a perda. Leia-se o poema “Amor Fati”: “Dependemos duma tangerina./ Contudo, nas mãos trémulas,/ a faca dos mortos vigia/ as pontas de luz, a barcaça/ oscila na lua dos dedos./ Conheço de Priapo a foz/ da íris, o tráfico, eu,/ esmagado na âncora da noite./ O olfato vai do sol para o forno,/ a pá, notória, esconde os artifícios./ Dependemos da morte, ida/ do esmalte obsceno ao bule do coito.” 
Muito aqui diz respeito ao esforço de quem procura atar impressões esquivas, a própria existência no seu trânsito, de que fica o pontilhado, aquele mínimo detalhe vivo, agitado, salpicando tudo. Assim, assumem proeminência os substantivos, tantos, e os verbos, já os adjectivos, muito menos. Fica-nos um enredo cheio de cortes, senhas, e mesmo o uso excessivo de vírgulas nos seus versos denuncia o esforço para represar as águas. Se nos diz que “o suporte desta fábula/ é o corpo”, vemos como este se adapta, transforma, e às tantas surgem-nos “os olhos compósitos”, uma dificuldade de acertar com o tempo degradado, quotidiano, quando o impulso desce a esse fundo brusco do que as eras deixam umas às outras. Assim, o poeta exprime aquele desejo de quem, com os navios, vai para lá do horizonte. Esse é o maior contraste, o corte sucessivo com a subjectividade nesta poesia, resistindo “ao sangue triste da memória”, e a uma época que tudo transporta dentro d’espelhos, de tal modo que estes parecem ser o seu ventre. 
Gil de Carvalho cola-se ao registo dos anónimos, serve-se da linguagem como estratégia, como elemento de corte, montagem, admirando o seu poder transfigurador, produzindo efeitos de simultaneidade, fazendo colapsar os planos. Tantos dos seus versos têm um gosto truncado; pressentimos como andou ali uma tesoura a cortar os tendões... “Cai na água, saboroso, o teu mundo.” As próprias imagens são como destroços, trazidos na maré. Ele vai agregando, incorporando, reelaborando, e como sugeria Ricardo Nunes, as experiências sugeridas são-nos transmitidas em amálgama numa trama verbal elíptica, carregada de sugestões, alusões tantas vezes quase impercetíveis. Não há facilidades, e se a lógica é digressiva, os tempos fundem-se, as vozes cruzam-se entre memórias, evocações, leituras. 
Parece que ouvimos rodar na mesa esse “pião errante, e as constelações” povoando-a de outras sombras. A vertigem vem da forma como somos precipitados entre escalas, impressões imediatas, que rebentam de um modo quase fotográfico, e outras que ficam a apurar, batendo na noite, misturando-se “na espuma da carne”. “Solto, no peso das velas, nos retratos/ Que saem do mar, no hálito do farol/ Velando as imagens votadas à morte.// A carroça trota quase paralela à proa/ E a trupe lança nos confins do céu/ A mesma canção que o baleeiro/ Arpoa.” 
Num tempo em que a lei corresponde ao ânimo desses carrascos velhos que ambicionam pôr fim às migrações, este poeta era desses que se deitavam na cama a gozar o tremor que nela aprofunda certas línguas, reconhecendo como “perto do que amamos,/ renasce, o tempo”. 
Num texto tão chegado à notícia da morte, podíamos, devíamos talvez, ter-nos obrigado a começar por aí, como Gil de Carvalho desapareceu no dia 17 de Dezembro... um cancro. Tinha 71 anos. Hugo Pinto Santos fez-nos o favor de redigir essa nota, dar a palavra a alguns amigos, lembrando como deixou algumas crónicas nas páginas do Independente, e como além da poesia chinesa, estendeu a outras paragens orientais o seu esforço antológico, de que resultou o pequeno volume Poemas Anónimos: Turcos, Mongóis, Chineses, e Incertos. Traduziu ainda Borges e Melville, colaborou na revista Raiz e Utopia e em alguns volumes colectivos da Assírio & Alvim, mas o seu maior êxito parece ter sido o modo como escapou às correntes mais vulgares, não sendo fácil retraçar-lhe um percurso dedicado às habituais servidões, nomeadamente as profissionais. Sabemos o quê dele? Que nasceu em Lisboa, no mês de Julho de 1954, e mais?... No seu “A cidade de cobre”, alguns polaroides anotados, mais umas quantas indicações um tanto deceptivas, tudo sempre conciso, veloz, discreto. Assim, de tantos anos nem um assobio nos chega. De outros fica-nos algo como essa “Canção do Guarda-Florestal”: “Demoraste/ Que guardo para ti/ As trepadeiras, vivas, os besouros/ Estremunhados, as maçãs tranacadas depois na palha/ Volúvel. Apanho o que passa na luz fugindo/ Da qual se desprende, por vezes, o ouriço – de madrugada,/ Quando também ele, por engano/ No teu vulto e nas névoas que baixam/ Procura/ Das faias saber quem nos leva para dentro// Deste silêncio/ Que nas folhas se agita, guardado/ – E mortal?// Demoraste... Demorei.” 
Ele diz-nos sempre menos do que satisfaria, goza o seu pedaço de curva, deixando a desejar, desequilibra, protege um certo mistério. Assim, resta sobretudo a oficina estimulante... (“Esta conversa dura/ Há quanto tempo debaixo/ De água?”) O que lemos parece ser algo desses elementos frágeis que se soltam, vêm ao de cima ao ferver a água. Não é fácil encontrar-lhe uma linhagem por estes lados. Talvez se Dickinson apenas murmurasse, se um rumor inventariasse esses aspectos que se limitam a sugerir o rasto e o ritmo. O sentimento aqui é só uma vaga hipótese, mas trabalha para recolher os “ponteiros da fauna”, esse cintilante tráfego, histórico. Por isso é uma poesia que nos pede mais tempo e beleza. E só não tem dúvidas ao eleger como “o mais precioso dos bens, o ritmo”. Mas parece interessada em estabelecer um outro caminho, evitando sempre as vias principais, dedicado a esses “forasteiros mesmo das coisas/ eternas”. 
“Tudo aqui são preces onde desembarca/ Uma luz cruel, mas justa./ Levar o fogo às coisas que fumegam/ As únicas vivas por léguas em redor.” 
Habituando o ouvido à sua fala, percebemos que nem é só difícil, mas é outra coisa, um esforço de evitar a precipitação, tirar o sentido, o embalo, esse impulso das mais pedidas canções. Ouvimos-lhe a nossa língua falada de um modo estrangeiro, sendo-nos estranha, pouco explicada, pouco interessada em causar frisson. É antes esse modo que tem a maré de rebentar repetidamente contra um muro, enleando-o nas suas garatujas. Forja um outro modo de observação, com essa “luz compacta e bailarina”. E note-se como ele pensa o traço limite: “A morte, um mosaico velho/ Enegrecido.” 
Entendia que o futuro se for soletrado irá fazer-nos ler o que se segue como a mais longa migração. E trabalhou já dedicado a esses usos, descobrindo no final de um percurso “um osso de baleia numa fresta de montanha”. 
Esta escala, hoje, ainda nos não diz muito. Mas quem sabe, se o que nos espera não são cuidados desses, como quem “põe pedrinhas brancas no lugar/ da cama”. 
Ele fala a língua desses “tardios invasores”, para quem só restará essa “vagabunda fé, que nos torce/ surpreendida”. 
Estamos a ficar muito fracos para as despedidas. Os obituários são notícias de tal modo incipientes que nos deixam na dúvida se não somos nós, deste lado, os mortos. Neste país até a doença que, enfim, nos mata parece ter mais consideração do que esse veneno de indiferença com que são escritos os obituários. Por isso, muito mais estimulante será sempre fazer o morto arranhar o caixão, rir-se lá de dentro, dizer que foi só à dispensa buscar alguma matéria mais funda. “Barulhos da vida e a floresta guardo/ Num armário rombo da povoação, à saída.” 
No caixão parece que somos atirados nós, incapazes de nos provocarmos qualquer abalo mais profundo. Os mortos, se já não temos as mesas dos cafés, devem ser velados na cama de cada um. E nessa linha aqui fica outro dos seus poemas: “Recorde: “À mesa dos cafés, a carne./ Quase nua, palpita dentro/ De pequenos cronómetros./ Recorda, dia a noite, que/ Afinal os obstáculos perduram/ Sempre no interior da chama./ Que o Eterno vacila sobre a cama/ destes animais litúrgicos, votados/ Que somos – ao amor, à morte, ao abandono.” 
Também nos cruzámos algumas vezes, teremos trocado algumas palavras, mas não me lembro de nada. Tinha-lhe lido os versos sem aproveitar grande coisa. Há um trabalho que só os anos podem fazer, e também a morte, que assume entre nós um peso disciplinar. Agora parece-me que o vejo a outra luz, como esses de quem nos diz que, depois de um largo tempo no mar, “vinham a terra e humedeciam os lábios”. Vejo agora, nas mesmas páginas que não soube antes ler, toda esta “poeira que não entra na morte”. Coisas demoradas, difíceis de decifrar. Mas o trabalho é este, resgatar de cada vez um pormenor, um sinal qualquer deste “nosso apego ao tempo”. E a sensação de que é isso o que mais importa destacar, esse testemunho capaz de perdurar depois de se desfazer a carne. E, então, resta-nos o quê? Alguns versos, como um sinal insistente. “No ouvido, à proa, uma aranha fabrica/ um filamento d’água, p’ra viver.”

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