quinta-feira, julho 04, 2024


A luz não nos obedece, 
talvez fique pelo beicinho duas
ou três vezes a cada década, mas
tem gostos estranhos
algum pintor atraindo-a com gomos de fruta,
tu e os teus álbuns, os restos do filme
a fotografia que me tiraste noutra vida,
esse animal gigantesco que eu fui
e que já deixou de se mexer,
a sua altura oferece-nos a vista
o remorso e a leve trepidação de certas
lembranças, 
ilustra qualquer coisa, 
como a fome nos desfaz, eu sigo
o teu olhar, tenho ciúmes de todos
os homens, sobretudo os que não são 
de cá, e só estão de passagem
tenho a sensação de ter escondida
uma arma, não sei
fico a ver a tua roupa a dançar
a dar voltas na corda ou a ir
e vir sobre as ondas, 
Abro as gavetas mexo nas tuas coisas
atravessada por um alfinete a borboleta 
ainda bate as asas, e o metal
parece arder, a ferrugem tu tens épocas
desconjuntadas aqui, talheres e jóias 
a casa está suja há fadas e baratas
por toda a parte, 
fazes-me falar sem ser claro onde vamos
esta pequena loira nunca me fez perguntas,
desenho-a na parede ao lado da cama
em cada quarto por onde passo,
aí onde se desenrolam as estações,
onde um estilhaço vivo do acaso
atinge a carne que me resta,
os ecos encontram-se, o ouvido
inventa os caminhos que faltam, 
a antiguidade da água,
a fonte perdida onde tenho bebido
o meu reflexo, prometeram-me
que o vinho acabaria por me matar
e agora às horas das visitas vêm ver-me
mas não me falam de ti, escreve-me
diz-me o que tens feito da luz,
aqui todos mastigam tão devagar
ninguém nos serve um copo, o tempo
não passa, é preciso empurrá-lo
com a ajuda dos comprimidos.


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