domingo, junho 30, 2024

Luís França e a edição literária entre folhos e fólios




 

Por cá temos muito disto, estas aias pavorosas, presunçosas, que trazem a literatura pelo beiço, e se lançam neste género de empreitadas sempre a armar ao pingarelho: capas duras, edições de luxo, tal é o ânimo de passar graxa na coisa, sempre a congeminar algum berloque, traficando nitratos celestes, merdices arrebicadas... Uns bigodaças, que o maior prazer que tiram da vida é revirar as pontas com ar de entendidos, e que atravessam a maior balbúrdia, gesticulando, dizendo-se tomados daquilo, mas só revelam um gosto imoderado pelos efeitos pastel, uns azuis parvos, uns relevos desnecessários, querem fingir um braille não propriamente para cegos, mais para esses que vivem de apalpar edições opulentas. Catam-se uns aos outros em busca do piolho que brilhe feito pepita de oiro, tontos militares dementes nessa adesão aos elementos postiços, vemo-los sempre encavalitados, recitando uns para os outros e para si mesmos esse desfiado louvor de tantas ondas, sempre com os seus acentos circunflexos retirados do cu, e aquela boquinha em ô-ô-ô... Olha-mesta maravilha qu'eu aqui trago... e desembrulham o pano para expôr uma buceta ressecada, mas preciosamente encadernada. E que se faz com aquilo? Nada, é um objecto mais de colecção, mais para emoldurar, para exibir às visitas, para pegar e virar as folhas usando luvas, quase sem respirar. E se há sempre uns curadores da sua própria cagança, uns que têm com a arte esse trato de bicharoco de museu e se deliciam com essas cabeleiras à luís xiv, aquele feltrozinho em redor do punho, depois espantam-se que quem gosta dos livros para escarafunchar, como uma ferida que se abre entre si e o outro, se marimbe para estes enredos empenados, estes modos caprichosos de vir para a literatura gargarejar alegremente os escarros que outros foram soltando de desprezo por gente assim. Aqui vemos esta resmungona mocinha bater pela milésima vez com a porta do salão de baile que lhe ocupa inteiramente o juízo, ela que esperava já ter sido coroada, vemo-la nuns dramas de casa de banho de liceu sempre a mudar de roupa murcha e a enfiar mais outro vestido de tule antes de voltar lá para dentro, para quinze minutos depois estar cá fora outra vez, reclamando que nunca foi beijada. Faz-se de fina, exibindo os primeiros calores, anseia por molhar o corpinho, mas não se quer misturar com as outras, as putas reles, como nos chama, as de estrada, as que o fazem barato, só pelo gozo, e vem-nos com estes truquezitos de perspectiva, desta feita traz o braço erguido e finge que se confessa ao Jarry, impõe-lhe uma série de remendos e grinaldas, as letrinhas debruadas, a talha dourada caindo naquela feiosa água verde e cinzenta, e com aquele sorriso de sopeira e indignação de princesa exige que algum crítico de nomeada (ou nem isso) a despose. Veja-se como a luisinha, com o afrancesado requinte do sobrenome, se acha no direito de vir reclamar dos críticos que não lhe pagam os sumptuários trapos, se atira a este ou àquele que não está para dar o preço de três refeições, ou quatro, pelo livro que ela mandou confeccionar segundo a linha que dizem ser o último grito, esses monos histéricos clamando por um céu que nos rebaixa como leitores a esses ataramelados modos... Quer atenção e faz destes escritores que nos poderiam dizer mais o seu modo de chantagem, mas em vez de nos passar as sementes para as crescermos nós como pudermos, nos nossos canteiros ou até na banheira, no penico, quer impingi-los metidos nestes requintados vasos para promover a oficina de lontras local, que espera fazer vingar o regime de olaria decorativa, as suas loiças torcendo a vista alegre em vista taciturna, limitando-se a encher de enfeites os lautréamont, os rabelais e mais uns que se juntam e, como daquilo só lhes fica a ideia de ruído, trazem os tachos e uns pobres duns instrumentos musicais a que deitam a unha e desfilam o seu barulho incapaz de deixar qualquer rastro, a menor inflexão ou arrepio, fazem barulho porque é essa a única resposta que lhes chega da imaginação, uma vez que neles esta se reduziu a isto: fazerem-se carraças dos cemitérios literários para depois virem exigir que os críticos digam alguma coisa dos seus vestidinhos cheios de folhos. Não, Luís França, não te pagamos para fazeres desta febre héctica outro modo de andar aí a lamber o próprio reflexo nas montras.

 

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