terça-feira, abril 23, 2024


Do mundo perdido perfumado atinge-nos
ainda a sua subtil mistura de tons,
entre standards de jazz e os pássaros,
com as portadas abertas sobre uma velha
praça europeia, e ao fundo os sinos
roçando a demência
à medida que o seu uivo azeda.
As manhãs deixam-se levar seja
pelo que for, por isso abrimos o jornal
buscando algo de familiar
num idioma estrangeiro 
e se a realidade fosse outra nós também 
perderíamos a vergonha, e que belos 
vigaristas então poderíamos ser.
Derramei o café e depois
apaguei com os punhos a fronteira
entre lá e cá, fui buscá-la à cama,
arrancada como um fruto
tão alto quanto alcanço, meio doce
meio verde, entregue ainda ao murmúrio
do outro lado da vida,
movia os lábios com sílabas
tão lentas, mas só lhe ouvia o corpo
o cabelo mal apanhado,
aquele desleixo espantoso
das idades mais frescas.
Com o lábio mordido de um vulgar ladrão, 
lembro-me como durante muito tempo
vivi apenas do olhar,
esta fome de outra língua, de trazer
à boca tanto do mundo quanto pudesse.
Leio o mapa na parede apontando 
a lugares desconhecidos,
as legendas tomadas daquele rigor
das fantasias mais abruptas,
essa integração cósmica e a ânsia 
que nos faz raptar o infinito
e trancá-lo num quarto,
molhando os dedos na boca antes
de os pôr em cada buraco
soprando a ver se a oiço e sinto
pelo avesso, assim com luciferino encanto
e esse golpe de inspiração 
que formou os grandes continentes 
com os dedos e os olhos colho
a substância que voa e sofre, esses detalhes
polidos entre a solidão e o esplendor.


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