sexta-feira, junho 02, 2023



O mundo deixa uma terrível saudade,
e nós buscamos algo que o devolva
num esgar vivo, aquele reflexo selvagem
que por vezes florescia nos espelhos
demorado, esquivando-se a qualquer
semelhança connosco, toda a vertigem
que sentíamos atentos no escuro,
eu acendia o rosto, refazia-o com os dedos
mais bruto, temperava a voz
como o grilo na garrafa que tem ainda
na memória o gosto do vinho, 
e do estreito gargalo entoa insistente 
a sua rima-soluço, um destroço que soa
a antigo como se a noite tivesse pulso,
noites como flores rindo abertas muito para lá
da sua duração, a luz variável, esses sóis
que se infiltram nas coisas,
suaves repetições, sílabas curtas e ecos
submersos, e um resto de sombra também,
mas de quem?, um tempo perdido, e,
na margem de tudo, as notas discretas
que tomamos, cheias de espanto,
às vezes fome, como quem deixa um tacho
a cozer de uns dias para os outros,
pela progressão do odor, querendo filtrar
nas narinas algo de outra natureza, indo
com a lição estudada do canário enegrecido
de tanto andar e tão fundo nas minas.


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