quarta-feira, maio 24, 2023

A moralidade do crime

 

Salvo raras posições de especial privilégio, esta não é uma boa altura para um tipo se achar acordado, mesmo que só meio desperto, damos por nós numa ruidosa e fétida camarata, com os grunhidos e a tosse persistente e que nos deixa os nervos cheios de nós só de imaginar o tipo de confusões doentias que obrigam as almas a viver de rastos, e isto ao mesmo tempo que o ar se move carregando o peso de gases de comida que coloca enigmas quanto à sua composição bestial, estamos imersos neste ambiente degradado de caserna a aguardar instruções, e há uns poucos que a certas horas se reúnem para conspirar discretamente e por cima de algum inofensivo e interminável jogo de cartas, que, de tão usadas, estão todas marcadas e não têm já frente nem verso, mas servem mais para segurar estes jovens com as suas carrancas pesadas, rostos difíceis de suportar na sua inteireza, nem tanto pelas feições como pela sua transparência, por tudo o que permitem adivinhar de íntimo sem nos colocar o menor obstáculo, esta gente dilacerada na sua exposição, no seu desejo de serem levados em conta, murmurando em tom altivo um género de baixezas que provocam em quem ouve um mal estar que nos obriga a coçarmo-nos como se houvéssemos sido mordidos num ponto inespecífico por um bicho que depôs no nosso sangue um ritmo imbecil que nos faz ter vontade de vomitar face aos nossos próprios pensamentos. Damos por nós como os restos de música já sem o menor ímpeto, como esses decrépitos bares de jazz onde uns imbecis falham as notas todas e castigam os instrumentos sem abandonar aquela postura presunçosa, e convidando as duas ou três pessoas que se revolvem em olhares entediados sobre o palco a iniciarem alguma disputa para nos virem com os seus rebarbativos e absurdos argumentos sobre a liberdade e o desafio da verdadeira arte. E o pior deste castigo é a noção de que não passamos desses tipos que o azar persegue e quase estima sem chegar a dar cabo de nós, gente obrigada a prestar esclarecimentos e preencher impressos em instituições, gente que está sempre a receber intimações para ir a alguma repartição e esvaziar os bolsos, expor os seus humílimos pertences segundo uma ordem que possa ser interpretada de fora e desapaixonadamente, gente forçada a passar boa parte do seu tempo nas outras filas da sopa, sendo mexidos e revirados por uma longa colher de pau, enjoados e aturdidos pela passividade disto tudo, pela falta de direcção, e apenas para que os funcionários do aparelho se sintam úteis, porque às tantas todo esse enredo burocrático cria os seus pretextos para convocar uns pobres coitados e obrigá-los a participar nessa grande trapaça. O pior é que mesmo o seu sofrimento parece um detalhe negligenciável, ou até um aspecto que serve para organizar o sentimento realista do processo, e todas essas dores rebaixam-nos à condição física, são reactivas e não de ordem existencial. Somos cúmplices da nossa degradação, colaboramos nesta depravação sacrificial. E este regime humilhante ainda nos esfrega nas trombas esse resíduo de decência que nos faz sermos incapazes de mandar tudo às malvas, e que expõe diante de nós a alternativa criminosa, a desses perfis cuja enfática força vital os impede de se misturarem e diluírem, personagens que zombam de tudo, escarnecem com enorme deleite deste arranjo e que operam descontraidamente à margem da sua ficção tacanha, que é para nós o coração das trevas de um esquema social que fica aí a latir as suas ameaças e a acenar com penas severíssimas mas que não teria a menor condição ou sequer disposição para vir atrás de nós se três ou quatro se rebelassem ao mesmo tempo nalgum serviço administrativo e partissem aquilo tudo. A grande ilusão é essa, e os criminosos são aqueles que vivem já do outro lado, como se adiantados no tempo, são os primeiros colonos desse reino de perpétua agitação, motim e alegre rebaldaria.


 

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