terça-feira, maio 09, 2023

UM ADEUS AOS DEUSES DO BAIRRO

 

Quantos homens temos capazes verdadeiramente de aguentar a imortalidade? Não só com os elementos de pompa e solenidade com que nos aparece nessa encenação com vista a mascarar a sordícia de certos arranjos, mas sobretudo com as suas impertinências e intrigas azucrinantes, com toda essa água suja de leituras equívocas, distorções mesquinhas, apropriações desasadas. Temos por aqui uma série de pretendentes que surgem sempre coçando-se num nervosismo irritante, uns líderes de minúsculos cultos, tantas vezes fazendo da mulher e de dois ou três amigos mentecaptos os reféns da sua inquestionável grandeza, abusam até à velhice daquela petulância triunfal da juventude aguardando o momento certo para desferir um golpe inesquecível, mas por mais que se pesem e apurem todas as medidas, por muito balanço que tomem, surgem-nos sempre com aqueles versinhos moídos de cansaço, e por mais que cada um dos termos ali pareçam caros, como se comprados a prestações, fazendo turnos em cadeias de fast-food, como se isso fosse prova do seu empenho e da sua têmpera, na verdade, tresandam a esses óleos e ouve-se por trás dos versos a fritura, toda aquela cultura extenuada, obrigada a ficar de pé, nesse ritual do que vive para se mostrar, para passar na inspecção, poemas que não passam de rolos compressores de varizes, onde não se dá por um acidente, onde nada de estranho tem lugar, onde tudo responde a uma cadência dos lugares de espera, encarregados da tonelagem amorfa, depois criam esses abrigos coleccionando toda essa loiça com um traço delicado pintada em gestos mínimos sustendo a respiração, todas essas prateleiras com uns artiguelhos colhidos nas viagens feitas já nessa ânsia de trazer algum tipo de recibo vistoso, mamarrachos e ícones espalhafatosos, artefactos ridiculamente exagerados por artesãos que assim sabem corresponder à tacanhez do espírito destes caçadores de souvenires, e é com este tipo de fé exibicionista, com os maus equilíbrios em que resulta, que nos damos conta de que aquilo a que chamam arte não passa de uma relação agonizante com o mundo, e surgem-nos depois de anos sempre os mesmos rapsodos repetitivos com esgarçadas imitações das mitologias inclinadas segundo uma ou outra teoria raptada estupidamente da ficção científica, e vêm-nos com o fogo duende engatilhado, sempre com uns mantras, uma conversa fiada que bem se vê que foi ensaiada ao espelho, taxistas ensaiando as suas infinitas prelecções ao percorrerem as infectas metrópoles do ego com o passageiro a lembrar-se que afinal prefere sair uns quarteirões antes do destino, entregam-nos o seu caminho de ecos, cochichos, citações convertidas em remendos, a apontar com o coto do lápis a grandes distâncias, abrindo os cadernos como pautas estrondosas e a fazer de maestros perante a negra maré das sílabas, mas depois são tudo frases torcidas dessas com algum isco motivacional, sempre um discurso para levantar a moral da equipa de vendas de aspiradores, e ainda que depois, ao chegar a casa, tracem as constelações segurando o cigarrito como uma batuta entre divagações de astronauta, nunca lhes ouvimos nos versos aves matinais, nem a primeira ou a última gota que provoque um desequilíbrio nesses processos-monstro do lirismo que se tornou outra das formas de nos aborrecer, e piscam aqueles olhos de gordura, e só mostram algum desembaraço na forma como vão abrindo as suas latas de conserva, confiantes de que isso os torna aptos a aguentarem com a imortalidade.

 

Sem comentários: