sábado, junho 25, 2022

Jefferson Dias e o sindicalismo da lírica de espalhafato

 

Prova de que a crítica é hoje um acto bem mais poético e selvagem do que a poesia que se vai escrevendo é a resistência bem maior que encontra, essa mobilização defensiva que leva a que se escave um fosso em torno dos que a praticam. É sentida como algo de calamitoso, isto tendo em conta essa fixação tão comum do escriba em tratar ele mesmo da sua indução nos sucessivos panteões, com constantes obras de alargamento para que lá possam caber todos. De outro modo, o risco seria não sobrar espaço para um só, pois a ideia é mesmo impedir que haja vozes que se imponham frente à mediania, e se alguém retém o elogio ou vai mais longe, ao ponto de apontar inconsistências, falhas, erros na prosápia delirante dos que desenham os seus contornos no momento em que o sol mais baixo lança as sombras mais longas e afiadas, esse ser acaba escorraçado à pedrada. A prova disto é o facto de hoje ser sempre o crítico quem acaba sendo chamado à liça, e é a ele que tudo lhe é exigido... Ele tem de passar num exame de doutoramento de cada vez que pretende apontar um conjunto de debilidades num livro proposto à circulação, e isto porque enfrenta invariavelmente esse aparato sindical dos que se organizam numa massa colectiva de medíocres para logo explicar que o crítico extravasou inteiramente ou não cumpriu as disposições que eles subsequentemente tratam de definir como código do procedimento administrativo ao nível da produção de um texto sobre o tal livro. Daí que o título da réplica à minha crítica seja “A Cartilha de Poesia do Senhor Diogo Vaz Pinto”. Mas e a pergunta é: E devia seguir a cartilha de quem, do Senhor Dias? Em suma, o que este sindicalismo dos da lírica quer é obrigar o crítico a ser necessariamente favorável e elogioso, ou, no mínimo, complacente. Já fiz a crítica à miserável antologia, o exame está fundamentado, e seria agora ceder e deixar-me enrolar e arrastar pela ilusão do antologiador se admitisse que não fiz o suficiente para que o leitor, caso queira, possa ele mesmo entender se o enunciado casa ou não com a proposta e os poemas ali reunidos. O que não vou é ver-me sujeito a ver a função de crítico reduzida à de um médico legista, estando obrigado a proceder a um relatório minucioso dos elementos que demonstram que aquilo que ali se faz passar por um poema não é mais do que um atamancado de proposições a ensaiar a pose. Dirigimo-nos a leitores, numa conversa que se pressupõe entre pares. Poderia, é claro, perder tempo a citar abundantemente. Mas o problema não é, neste caso, de prova, e sim de um mínimo discernimento, pois nenhum poema é mau no vazio, depende sempre de outras leituras. Mas se fossem necessários exemplos mais flagrantes, basta lembrar que há um texto de Tarso de Melo que ocupa vinte páginas e que não passa da transposição de uma sentença de um processo, sem dúvida dolorosamente injusta, mas não deixa de ser, como de resto avisa o título um antipoema. Não ao estilo de Nicanor Parra, como algo que se esquiva e leva ao desconchavo todas as expectativas, servindo um ardil mais impetuoso, mas no sentido mais ordinário da coisa, o da banal indignação com que todos os dias qualquer um de nós lavra denuncias, muitas delas com toda a justificação… “O ministério público ofereceu denúncia/ contra rafael braga vieira/ pelos seguintes comportamentos ilícitos/ descritos na denúncia, a saber:// no dia 12 de janeiro de 2016/ por volta das 09 horas, na rua 29/ em localidade conhecida como ‘sem terra’/ situado no interior da comunidade vila cruzeiro/ no complexo de favelas do alemão/ bairro da penha, nesta cidade// o denunciado, com consciência e vontade,/ trazia consigo, com finalidade de tráfico,/ seis decigramas da substância entorpecente/ cannabis sativa acondicionados/ em uma embalagem plástica fechada por nó”… Podemos até apreciar o gesto activista, mas é preciso uma estopada destas? É que o poema ainda é outra coisa, e como não dão nenhum sinal de saberem o que seja, insistem em anular qualquer hipótese de crítica, desde logo porque, se não entendem o que seja a descoberta de um novo caminho através do uso da linguagem, também entendem que a crítica só tem é de ficar na retaguarda, dando algumas orientações ao longe, como a base para a missão espacial, enquanto os poetas se arriscam no espaço, são uns astronautas, cosendo as suas imagens visionárias com a linha que lhes emprestam as estrelas. E o estatuto adquire-se logo de nascença, com a certidão, o de génio, é um privilégio ao dispor de quem quiser, que escreva umas porras em linhas que não vão até ao fim, e depois há esse perfeito alibi do verso branco, mesmo a coisa mais manca e romba, pois não há qualquer cálculo de estruturas a esse nível, se alguém acha a construção frágil pois fecha-se-lhe a porta na cara e do interior do estabelecimento põem-se a gritar que reservam o direito de admissão. Num momento eram promoções e convites, borlas, no momento seguinte é uma hostilidade que se torna o ponto mais fascinante e esforçado desses números. E hoje gozam mais que nunca dessa vantagem de legislar à balda e impor tiranicamente as suas regras, isto porque o fazem numas assembleias de condóminos que valem apenas para as espeluncas mentais onde definham uns com os outros, pois, não tendo quem os leia, são à vez o senhorio e o inquilino, todos muito cúmplices, tendo os seus destinos entrelaçados, e beneficiando, por isso, em prestar testemunho favorável em todos os actos notariais de reconhecimento dessa propriedade etérea e que, em princípio, não colidirá com os interesses de ninguém. Que importa que os poetas sejam um bando de maluquitos que estão lá, uns às cavalitas dos outros, revezando-se, nessas segundas infâncias em que brincam a ser gigantes e a fazer estremecer a terra? Não vem disso grande mal ao mundo, pois não? Só o mal de nos condenarem a pertencer a essas alegorias da caverna, a essas fantasias grosseiras, a esse evangelismo de líricos taralhoucos. E que se sirvam da língua para a as suas igrejas universais, que mal tem? Afinal, é um meio que já por si anda por aí tão desusado, tão sem norte, em palavras tão frouxas que mal conseguem que a realidade adira a elas e se deixe abalar. Certamente, uma coisa assim não incomoda ninguém. O que estes poetas nos pedem, no fundo, é que os deixemos em paz lá com as suas ligas de fantasia, os seus Dungeons and Dragons, onde uns enfezados mentais escolhem ser grandes magos da ordem do raio que os parta e guerreiros temíveis lançando dados em volta de uma mesa e urrando como bárbaros. De resto, o destino das artes da linguagem tem sido o de manter essa estéril claridade que nos dá vontade de passar pelas coisas de olhos fechados, assentindo para não se escolher um caminho ainda mais pedregoso, sendo certo que, seja em que regime for, mesmo no da poesia, nunca conseguimos rodear-nos do silêncio suficiente e que até a noite se tornou insuficientemente nocturna. Vão-se valendo de todo o tipo de desculpas, da rebaldaria e excessos das vanguardas para afirmar os seus propósitos de redução a um esquema em pirâmide que permite articular expectativas, egos, sem nunca cumprir nada. Os grandes poetas não precisam de muita realidade, basta-lhes um fragmento minúsculo para procederem a um deslocamento e fazer essa peça tornar-se de tal modo absorvente que o mundo se sente todo tocado e exposto, vulnerável face à sua atenção extrema. Mas estes, na falta dessa argúcia criadora, servem-se do discurso jornalístico, vêm-nos com hinos nauseabundos, odes perras, elegias escrofulosas, levantando as suas metáforas do manancial dos feitos do passado, e reproduzem esses protocolos aprendidos nos manuais escolares, variando a circunstância, cortando, colando os cabeçalhos dos jornais, e é isso que explica que o grande poema, a bandeira e o arco sobre o qual tem forçosamente de se passar, e que serve a Jefferson para vir exigir que o crítico se retrate face à sua esplendorosa antologia da nova poesia brasileira, seja um poema que não passa de uma adaptação do America, de Ginsberg, cooptando imagens requentadas, já bafejadas por tantos hálitos, no buffet mais à mão, e que roçam aquela angustiada influência face a um outro poeta brasileiro, Roberto Piva, que paira ali como um fantasma entre tantos num presídio sobrelotado. Eis o excerto de que o Senhor Dias se serve para provar a maravilha da sua antologia: “Quero Augusto dos Anjos em versos brancos/ & morar na Sombra de sua Melancolia/ ser agarrado pela Noite sem sapatos/ & me afogar no mar poluído da Separação/ & dançar até o Apocalipse/ Das crianças mortas”. E logo trata de fazer a prova de vida do tal poema e, por arrasto, da poesia por ele e por Wilson Alves-Bezerra organizada, e onde, entre o que de melhor se escreve hoje na poesia brasileira não hesitam mesmo em exaltar as suas próprias produções. Veja-se o Senhor Dias a fazer um exame de uma profundidade estupenda aos versos antes reproduzidos: «E as imagens? Que grande achado a “Noite sem sapatos”! E o “mar poluído da Separação”, o “Apocalipse das crianças mortas”? Considero aqui a imagem poética nos termos propostos por Pierre Reverdy, isto é, quando se apropinqua realidades díspares, sendo que quanto mais distantes entre si, tanto mais pujante a imagem poética que deste avizinhamento resulta. Ao Senhor Pinto, explico: “Noite sem sapatos”.» E aí está: tudo explicadinho. Bastou citar o Reverdy e depois fazer uns quantos sublinhados. Eis a genialidade da análise do Senhor Dias. Pela nossa parte, se aceitamos admitir que o poema em causa está entre os melhores do livro, não deixa ainda assim de ser mau. E imagens como “noite sem sapatos” podem ter o seu encanto, mas não mais do que o de uma flor sobre uma campa, exalando um resto de cor em jeito de comiseração aflita, mas não chega para dar vida a um fôlego que expirou. Mas aí está, essa é a dor e a cova comum, essa que parecia feita à medida de um e acaba sendo uma vala onde se enterra uma geração sem grande perda, porque a seguinte já retomou a azucrinante gritaria, sem renovar, apenas mantendo ou elevando o nível do ruído. E depois é como reza aquele poema de Leminski:

um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada

depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um eluárd um ginsberg

por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores


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