sexta-feira, abril 29, 2022


Desde o sangue da primeira caça,
o silêncio tem conhecido todos os venenos
e sabe como mesmo um monstro morde o anzol,
que o golpe mais duro é uma longa paciência,
e assim estende a linha que mais à frente
se retesa de mortífera delicadeza. 
E tu gostas sobretudo de estudar
aquilo que se move, reflexos nas águas,
ler o que vem à tona depois de rasgares
com um gesto o ventre dos enigmas.
Um pouco de cor bailando à superfície.
Reúnes as migalhas que vão caindo
da mesa dos santos, os terríveis devotos,
tens a voz como um vaso, que dificilmente
vingará neste chão onde os prodígios
logo empalidecem, mas admiras ao menos
as árvores frondosas e frescas que tanto gorjeiam
de abundarem nelas aves vindas de toda a parte.
Enches um copo e bebes de um trago,
enches de novo e a terra encantada
nem te parece tão distante assim. A esta hora,
raros são os apartamentos onde ainda entra
o sono, desse mais vivo e tumultuoso.
Aqui nem se pode deixar crescer as unhas.
No meio desta gente seremos miúdos detestáveis,
cansados de sonhar que existimos,
e nem fingimos que a guerra só se faz lá
do outro lado da vida. Custa-nos este castigo,
cada aurora tombada, o desperdício de cada noite,
afastamo-nos nesta ilha de tantas formas,
algures entre jogos rijos e a primeira
linha de fogo, para deixarmos no pano
a mancha ainda cheia de febre, no chão
a sombra que ninguém sabe como lavar.


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