quinta-feira, abril 28, 2022

O escritor português e o literaturismo

I

O escritor português sente falta de ser tratado de forma ordinária, está sempre à espera que chegue um convite, chora, indigna-se muito se o não chamam para alguma quermesse, missa de sétimo dia e sobretudo para um festival, fica agarrado à linha encaracolando o fio de um telefone dos antigos, arrastando-o pelos corredores frios do ego, com aquele papel de parede todo coçado, confusas cenas de caça penduradas, e o que ele não perdoa é não ser convocado, fica doido para sair em excursão, tem malas de tamanhos diversos já feitas para sair a correr, numa emergência, tipo bombeiro do espírito, e corre, lança-se pela escada de incêndio, adora aquele ambiente de visita de escola, mas o deslumbramento em vez de ser com as vistas é o de cada um consigo mesmo, todos em fila, um bando de deuses de bibe e com ar retardado, indo em busca dos seus crentes nalgum quinto dos infernos, e é pôr-lhes um micro à frente e lá vem o chorrilho, as tábuas da lei, num balanço entre coisa a puxar à lagriminha, edulcorada, meio senil, e a diatribe aselha, a desses outros que vão para ali meio irados, líderes populistas de um partido ad hoc, ao sabor da desgraça que vem essa semana nos cabeçalhos, como quem desconta de um divórcio amargo, sempre a trote numas denúncias muito vagas, umas dores na ponta do dedo que dá para se tocarem aqui ou ali e se sentirem mal de tudo, e depois, se lhes falha a comissão de festas, ainda fazem estas birras por se terem esquecido deles. Mas eu sou espantoso, porra! Era fazer um Truman Show com estes cretinos todos, trancá-los num perpétuo esquema de uns festivais para os outros, e levá-los nuns carrões sempre numa volta rebuscada pelo Seixal, Amadora, Frielas, Rinchoa, e dizer-lhes que estão em Atacama, no Iucatão, outras paragens longínquas, exóticas e o raio, com gente dessa que gosta de ver aviões voar rasteirinho, fazer grandes caretas, exibir os seus órgãos mais sentimentais, dar à manivela de tudo o que seja caixa de ritmos para a infindável tagarelice, a destes escritores que não podem ver a hora de largar a mula da escrita e ir de jato às lândias, para virem de lá a dizer que são grandes no Japão, na Indonésia, que não se cansam de os ler em Timor, que no Brasil há quem tenha deixado mulher e filhos para os estudar com o afinco exigido, é tudo assim, e mereciam viver no aeroporto, numa carreira de autocarros, como se de castigo, mas com aquela alegria de quem ouviu dizer que foi eleito, está entre os que vão integrar o lote, a selecção, o regime especial, o bando aparte, a embaixada em trânsito dos tarecos do rebeubeubeu.


II

Mas talvez se possa explicar o fenómeno como uma necessidade imperiosa de espairecer, fugir por um bocado, no fundo, pode ser que a última coisa que o escritor português deseja seja essa condição tão limitada, a de viver celebrado num país onde o génio sempre foi algo de vergonhoso, a exorcizar, e pode ser que ele queira acima de tudo livrar-se da parte do "português", arrancar à força de tanto escrever o osso da terra, ser escritor livrando-se do português, não da língua, mas deste mal comum, desta enfermidade de um país que não deixa que ninguém escape à sua pobre imaginação e ao seu excessivo apego pelos convencionalismos, afinal, mesmo quando transgride, para que isso seja reconhecido, o escritor português tem de o fazer observando alguma discrição, pode desfazer a louça, mas nas paredes, gritar contando que não entre pela noite dentro e que respeite os dias de trabalho, daí que em vez de se forçar ao exílio, o escritor português pratica o literaturismo, porque o que se pretende não é um eterno desaguisado, um feroz virar de costas, um bater com a porta que faça estremecer as fundações da casa, mas tão-só uma suave animosidade, e mesmo aquele escritor todo encartado, o de esquerda, em certas alturas preferiria distanciar-se do partido, quando as posições deste no que toca à geopolítica mundial comprometem a sua impecável folha, e admite então que esteja a apanhar por tabela, a ser alvo de retaliação, tudo isto entra em linha de conta, e este escritor que tanto anseia ir lá fora, como se viver neste país não passasse de uma espécie de ensaio, ao passo que uma carreira (mesmo que incontinente) no estrangeiro fosse já um confronto mais directo com a realidade, esse escritor verdadeiramente só tem como causa pública a sua visibilidade, o seu desejo de aparecer, ser exibido nessas montras onde se perfilam os badamecos oficiais, os agentes diluentes, os rostos da campanha "é isto o que temos", naturalmente, estes sentem-se atingidos na sua dignidade ao não serem convidados, pois escapa-lhes sempre como a verdadeira literatura é algo que uma nação preferiria esconder, uma indignidade de todo o tamanho, e que, nesta época em particular, as obras que são ainda capazes de produzir abalo são rodeadas de um silêncio de tal modo sistemático que funciona como uma camisas-de-forças, uma tentativa de denunciar como irremediáveis vociferadores, seres amargos, imprestáveis, aqueles que ameaçam trazer para estas paragens algum do pavor de outros tempos. Por outro lado, estes escritores que tomam parte nas acções da nossa agência de literaturismo fazem pela noção de risco o mesmo que os animais de circo com os seus truques ensaiados debaixo do aviso do chicote.


 

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