segunda-feira, outubro 25, 2021


Quero consumir a obra dos que se escondem,
roer as provas de um mundo que me seja 
inteiramente estranho, como vozes ou passos
entre lugares sagrados, e manhãs tão distantes.
Se souber rasgá-los, a tantos estômagos
ainda irei buscar imagens meio digeridas,
pois se está fora de causa acabar bem,
também quero os sinais da luta, dos gritos
às coisas abafadas, e bem assim quero ainda
o espanto entre as coisas domésticas,
o pardal que te entrou no quarto,
a carta que preferiste não abrir, o conteúdo
que vais inventando, alterando desse modo
a vida, a história de tantos, e esse gesto a mais;
como foi que, faltando um botão à camisa, 
usaste um caule para unir as casas bem
junto à pele, isso e a luz frágil tremida
em que nos cosemos, tudo o que passou por aqui,
nessa toada discreta entre restos imortais.
Como destes dias tu fazes para que paire um pó,
e eu já vou perdendo o ouvido de o sentir cair
intimamente, na mistura do esquecimento
com o frio que dá forma às coisas que calamos.
O tempo ensina a aguardar nos enigmas,
a distinguir por entre os sonhos essas marcas
da terra revolvida, e a não perguntar para onde
vai a luz depois disto. Faz de conta que não
os ouves, eu finjo que não sei como as noites
caem mais fundo e se demoram em certos lugares.
No fim, nem é o vazio o que mais nos consome,
mas como parece que nunca esperou muito de nós.


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