terça-feira, outubro 19, 2021

As susceptibilidades dos poetas de merda

 

Que importa fazer a coisa tão bem feita que não haja necessidade depois de mais nenhuma explicação? Isso do génio está, de qualquer modo, sobrevalorizado. Quem acredita ainda que um só se levante neste frio terrível e com a sua matilha brutal dê uma ronda descendo à intimidade de todos, que volte a despertar o pavor que nos afiava o sangue em tempos em que ser homem era ter um assombro profundo pelas coisas, porque houve um tempo em que nada era assegurado ou fácil, não éramos tão assediados por esta atmosfera envelhecida, gasta, viciada. Saber manobrar o fogo era tão importante como trazer a consciência no melhor estado, limpa como uma arma, ora, este é um tempo em que na melhor das hipóteses pode contar-se com quem tenha um ego maior que um mero insecto atraído por qualquer luzinha de presença, esse ainda dará por si a levar descomposturas dele (do ego), isto pelo desmazelo em que se deixou andar, primeiramente porque à volta é um mar de decapitados, raros sequer admitem que se possa extrair algum ânimo de pôr o espírito todo num ínfimo detalhe, num verso ou numa frase, aplicar-se até ao limite das suas forças em deixar um prego armado que possa causar choque a esses leitores amodorrados pelas “línguas de madeira”, afiar com júbilo secreto o seu próprio idioma, de tal modo que uma simples proposição possa lançar-se no olho e causar grave perturbação na vista de quem passava a correr. Houve um tempo em que não era preciso explicar estas coisas, em que a arte era política porque começava por se distinguir de tudo o que fossem fracos consolos, frutos bichados, em que servia para afinar os propósitos de cada um para depois chegarmos ao que merecia ser assunto de todos, em que o mal não era tido desde logo como incurável, o desejo não se deixava trancar nem asfixiar em troco da realização dos sonhos mais daninhos, dessa reverência patética que hoje é moeda entre tantos, e a imaginação era o verdadeiro argumento. Também não se estava nisto com receio de se ser expulso de uma seita qualquer, nem era a sovinice que se impunha na hora de levar a admiração a apanhar ar ou mesmo apanhar forte e feio se alguém estivesse à altura de uma desanca dessas. Era um orgulho ser-se destruído, ter-se ossos e carne para tanto, para se comer o embate de uma inteligência ferocíssima, cheia de ímpeto. Então, nem tantos tinham medo de levar porrada. Alguns saíam mesmo procurando quem lhes fizesse o favor. Mas este é um tempo que se resume a esse balanço trôpego entre um cinismo que tudo derrota à partida e uma credulidade estéril, essa que leva a que não se encontre um crítico empenhado e minimamente respaldado num país em que, levantando qualquer calhau, se dá por mais outro poeta, desses que só querem mesmo é usar o título, que escrevem uns versinhos de merda e logo saem a correr para se besuntarem uns aos outros desse xarope langue. Em parte nenhuma se consegue encontrar alguém para ler os versos com algum critério, e se alguém o faz, ui, o trauma, a choradeira, os ciúmes, logo vêm os abaixo-assinados a mandar repor a ordem na “Pátria das Kulturas e arredores ajardinados”, logo se é acusado de exercício de censura, e é-se tachado de "polícia poética". E porquê? Pois por lermos e falarmos dos tais versinhos e os compararmos com aqueles que não vivem de pedinchar à porta das sacristias. Portanto, voltamos a esta infantilidade: se não vens de apito e com o saco das guloseimas para distribuir pela garotada, se não é para te juntares às marchas do espectáculo das tretas (letras), pois está calado, que a poesia como toda a gente sabe nunca desmanchou prazeres, nunca enfiou o pé bem fundo nas partes (artes) desses que tanto gostam de vir para isto gatinhar. Falam muito de abismos, mas é vê-los nestas liturgias mansas em que todos comungam, se benzem e revezam, sabendo-se miseráveis e acabando, afinal, podres de ressentimento mais pela companhia a que se vêm condenados.

Eis, para todos esses que só sonham com a liberdade de serem poetas de merda (mas que ninguém lhes diga isso!), o seu irónico manifesto, ou antes o seu kit com a estaca de madeira, o alhinho, a cruz e a água benta, para andarem protegidos da demoníaca influência da crítica:

«Subsídios para a criação de uma polícia poética»
de José Pedro Moreira

para o Ricardo Marques

é altura de admitir
que os esforços
de um ou dois críticos
apesar de heróicos
não são suficientes
e que hoje
mais do que nunca
é necessário
que o estado
tome medidas firmes
sobre o oeste selvagem
que se tornou
a poesia em Portugal

uma entidade isenta
que certifique
a verdadeira poesia
legisle
sobre a temática
regule a forma
promova
a criação de léxicos
de termos poéticos
e anti-poéticos
nomeie comissões
de eventos
defina critérios de avaliação
sem esquecer
os anos de serviço
seja firme
na defesa do interesse público
contra os lobbies
do verso branco
e decida por fim
a penosa questão da rima

e sobretudo
que proteja
os cidadãos cumpridores
da poesia iníqua
o artifício 
desprovido de sentido
aplique coimas
aos que escrevem poemas
sobre escrever poemas

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