quinta-feira, maio 06, 2021


Lê-mo em tom de notícia, erros de sintaxe 
nos sítios certos, a melodia entontecida das sílabas
um grito de cabeça cortada, caído, flor lancinante
misturada às raízes das estrelas, e seca-a
depois se te importa que da fala
reste o detrito, se queres deixar um mapa,
a decomposição de um fruto aberto
como as belas preces dos condenados
que julgaste ouvir num outro quarto,
a trepadeira interior ou aqueles desenhos
de um corpo que se perdeu, cotejado
longamente nos velhos textos, 
os cantos dobrados de um tratado antigo
sobre o prazer, cômo-te enquanto leio
e a luz revolve tantas noites, dispostas
em gomos, sinto na boca o crescimento
desde a água às raízes, o sabor, a leve maneira
de outros tempos, e o eco de tantos nomes,
serenos destroços, perdidos gestos para o mármore,
um ombro mordido pela primeira vez
e agora de novo ao fim de séculos,
o que da paixão de outros desenterrámos,
o que da imaginação se exprime em manchas
de sémen, numa claridade à margem
deste tempo, e se deixamos que o amor
nos imite, se o desejo floresce ainda
entre túmulos abertos, nada termina
nem começa, deixaram-nos a cama suja
como se viva, ainda quente, e em vez
de mudarmos os lençóis, no lugar do pudor
ou da decência, da carne explicam-nos o terror
que súbito se cala, e como nos beija
esse espanto, este peso que se enterra em nós
até que a morte desenvolva o seu talento.

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