quinta-feira, abril 22, 2021


A meias com Vasco Graça Moura

Que impacto o nosso, entre os muros baixos do tempo, como sebes num jardim, que saltas ainda antes de o fazeres com o jogo da vista, o alcance tocado, solto, e ouves dele como ondas os factos ocorridos e os outros, até que abandonas a memória, quebra-se o lacre entre o agora e o depois, tudo se volta como campos íntimos, as origens e os fins revolvendo-se, invadem-te agora outras sensações, a surda função do mundo, a relação da luz entre as palavras e como estas comandam as plantas que crescem ao teu redor, as superfícies nodosas dos canteiros, o modo como o toque deixa de ser teu, e elas, folhas ou flores, os ramos te atravessam, és o espinho, um mito que respira eliminando contornos, o teu vestido atravessado ficou lá atrás, longe, vivo, tão mulher, parado num dos gestos da dança, ganhando força, branco, no meio da tua vida silenciosa, e eu admirado vendo ainda não sei onde, de que ponto, com essa árvore a entrar-me pelo espelho, ferindo o vidro da solidão, nessa superfície onde baila uma rosa de ensaio, canção sem um som, sombra nascida ao contrário, deixando na mesa a luz dos teus cabelos claros, o desenho doce dessa cabeça, este meu modo de circundar, aproximando-me enfim e com a maior estranheza, e fascínio, do poema.

 

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