sábado, janeiro 02, 2021


Não posso fazer tanto sentido como gostava,
com a tinta traço a linha entre o inferno
e o resto, desço esse degrau, a terra geme
do corpo a voz em flecha armei
e a paisagem toda ao redor cedeu
lá em baixo, na cratera, no salão de baile
algo se atravessa, mas ninguém aguenta o frio
e porque o público não quer ouvir
não há poetas que se atrevam,
sombras debicam as vértebras da epopeia,
eles fixam-no, esse estranho vazio,
e emudecem. Menos que o pó,
menos que a luz tocada, 
não há uma árvore ou pássaros
que amparem o golpe, ausências sim
o jardim que apenas se ouve
gorjeios, afinações, a tensão dos músicos
antes do concerto. É a música que sobrou
ou alguma memória preservando em nós
a sua frescura. E um gole impossível
de engolir toma de vez a boca
como se nos afogasse.
Esmagaste o corpo do tempo,
e ao abrires a mão ainda mudava
de forma, de vida. A crónica soará a falso,
não há mais volta porque não há curva
nesta terra, tudo o que há
é um mesmo lugar parado,
a rotação morta das coisas em torno de si.
Meio vazia, a cidade, a pobre presença
os sinais que deixamos uns para os outros,
os uivos de quem ouviu morrer o mar,
vozes mais vivas do que nós
despem-se num dos mil quartos
incapazes de um gesto que seja em honra
das paixões antigas dos homens,
nem um sorriso antes de se exporem,
e o sexo lembra um órgão arrancado.
Mulheres irreconhecíveis, estas
têm mais graus além dos trezentos e sessenta,
cobram horas absurdas, dizem-nos nomes
que nos seguem e envenenam os sonhos.
Valem bem cada coroa gasta.
Por isso, por podermos decorar
a velha imponência do mundo com os lábios
cingir-lhe o peito, o fôlego, as coxas
tudo a arder na colcha sem idioma
nem ironia, num padrão gasto,
nessa mistura de beatitude e dor.
Deixam-nos ouvir o desejo de outros,
e a guerra dispersa entre tantos momentos,
tantos corpos que não se acham,
retoma o balanço e o sentido
neste pobre acto humano,
e a manhã rola até aqui  como se caída
ou colhida, fruto breve que nos traz
o gosto amargo da nossa transformação.


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